17.4.24

As coisas feias primeiro

Luscious Jackson, “Naked Eye”, in https://www.youtube.com/watch?v=0NhqN0KcWAE

Primeiro era a noite – os vultos, a sombra estrutural, os pesadelos, a hibernação que escondia o desperdício, o adiamento, o sono como provérbio da fragilidade.

Primeiro eram os rostos indiferentes, as árvores sem paradeiro, os nomes sem significado, a pura especulação das almas apenas aparentemente iguais, um rio com caudal subterrâneo, um jogo de espelhos que apanha as silhuetas em falso, o ardil do fingimento.

Primeiro era a impressão de uma leveza insondável, a matéria-prima da perplexidade, as dúvidas em barda que ficavam órfãs de resposta, a angústia desalinhada nos parágrafos puídos que armadilhavam as mãos, o olhar projetado na penumbra a fazer de conta que era letrado.

Depois vinha o demais. O dia, ao início descarnado, a levantar âncora, deixando a claridade à mercê dos olhares desarmados. Os sonhos afinal poéticos, como vida paralela, um palco encenado como vela alternativa erguida no desdobramento da vida. Os rostos transformados em nomes e os estranhos que perderam essa condição. As árvores mapeadas, sem serem paisagem do anonimato. As almas desiguais sem beijarem a angústia da demagogia. Os corpos reverberados pelos espelhos sem parecerem forasteiros – e as vozes reproduzidas sem soarem às vozes dos outros. 

Depois vinha a antítese do feio. As interrogações que afinal não eram órfãs, convencidas que não supõem uma resposta. A angústia sem serventia, o miradouro de onde se abarca o mundo mergulhado na sua complexa teia. As mãos opulentas com tanto mundo por saber, com tantos dias por haver. A penumbra que não diminuía o olhar.

Aprendíamos que era melhor começar pelas coisas feias, deixando as belas para depois. As almas não alinhadas participam a sua admirável autonomia. São livres, vacinadas contra os sobressaltos que afeiam o mundo de sombras e vultos que tencionam açambarcar a sua liberdade. Não protestam, não exclamam os impropérios gastos que não toleram as fragilidades do mundo exterior. Deixam os dias seguir na sua sucessão astronómica e por vezes ilógica. Elas congeminam a sua beleza interior. Participam na beleza irreparável de um dia.

Sem comentários: