4.4.24

Prevaricamos?

Liz Lawrence, “Big Machine”, in https://www.youtube.com/watch?v=l7FgHi0Emc0

Sejamos descidadãos, voltados sobre a rebeldia que nos ferve o sangue, desaprendendo os cânones, postergando compromissos, denunciando as conspirações que se movem contra a liberdade de espírito, dando caução aos dissidentes fartos de tanta normalidade e de verem hasteada a palavra “estabilidade”, assim transformada em valor quando é apenas um meio. Sejamos descidadãos, por antinomia com a cidadania domesticada que nos oferece talhadas de hibernação.

Prevaricamos? Se nos regermos pelos cânones, prevaricamos. Depressa ficamos escondidos na reserva onde se exilam os párias, sujeitos à apóstase decretada pelos lídimos procuradores do estabelecido. Prevaricamos e depressa ficamos sob a alçada da vingança estatuída para os párias sem redenção, só um pouco em falta para serem despojados da nacionalidade. Prevaricamos se somos condenados à apátrida condição, ou se intencionalmente o fazemos para nos ser subtraída a pertença que consta do documento de identificação.

Prevaricamos se mexemos na matéria necrosada que não admite questionamentos. Ainda mais prevaricamos se usarmos a ironia para tirar o pedestal a divindades que se convenceram que assentam em pés de ouro. Como prevaricamos se ofendemos as autoridades com um inocente escárnio, pois há uma casta que não admite ser ridicularizada e desse modo assesta o arsenal contra o princípio da igualdade de que se pavoneia ser embaixadora.

Prevaricamos, apenas porque nos apetece prevaricar. Não escondemos a prevaricação, que não toleramos o interior tatear da alma ungida pela hipocrisia. Prevaricamos, sem máscara instituída (que já chegou o tempo da máscara imposta por decreto). Prevaricamos sem ser à distância, com a falsa coragem de se saber inacessível para a fúria dos visados. A prevaricação com paradeiro certo não procura refúgio das punições cominadas. 

Procuramos novas sedes de prevaricação. Ousamos descobri-las nos lugares mais insuspeitos, nas palavras eruditas que não se salvam de uma salva de escárnio, nos heróis desmobilizados pela usura de deixarem que os entronizem nessa condição, nas malparidas hagiografias que servem para esvaziar pretensiosas figuras em pré-estado de beatificação. Procuramos os alvos da prevaricação até debaixo dos calhaus, em incursões submersíveis, nos céus onde se perfilam os catedráticos de coisas muitas a meias com estrelas cadentes, na arraia-miúda para não sermos acusados de um viés em desfavor dos “notáveis”.

Continuaremos a prevaricar, a menos que a prevaricação se esgote por dentro e seja normalizada, perdendo a sua linhagem de prevaricação. 

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