23.4.24

O juro da jura

Cass McCombs, “The Great Pixley Train Robbery” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=oD9Z5lRL6Og

Desamanhece o estio pendurado numa folha de calendário. Alguém foi comprar o calendário do ano que é daqui a três calendários completos. Começa a escrever furiosamente nas páginas avulsas. São juras. Acabou de comprometer esses dias, como se estivessem destinados a ser oráculos. 

Nos escombros, a poeira ainda embacia o dia outrora, medindo-se a ossatura da memória. Os remédios não são cicatrizes, merecem uma segunda hipótese antes de serem condenados por prescrição. Os homens deixam-se reféns de outras combustões, atiram-se de cabeça para as beligerâncias que assanham o futuro, prometem-se aos poços da morte onde a audácia é desafiada. Em vez de conjugarem a harmonia em forma de verbo, preferem o epitáfio alinhado na mentira do tempo. 

A tarde inteira lê-se na duração de um abril. Os antepassados deixaram o fermento necessário. Nós transformámo-lo na argamassa que desmente as fundações do caos. Ajeitamos os cabelos desarrumados pelo vento, sem desviarmos o olhar do mar. Somos alfândegas itinerantes que desafiam a loucura dos compêndios, como se aves tresloucadas suassem a vergonha do mundo e se encavalitassem nos despojos. Mas depois sobram as juras, as aliterações que descontam a experiência e atiram para depois, sempre para depois, os erros que não precisam de redenção. Oxalá não houvesse tempo. E nós fôssemos curadores de lugares que não obedecem a fronteiras.

As juras são escritas a tinta vermelha, a tinta feita com o sangue que fica por resgatar. Somos reféns das juras, como se precisássemos de saber da toada do futuro antes que ele seja admitido a concurso. Devíamos reservar as máquinas incansáveis para o presente. Devíamos fugir das centelhas, vigiar os lagos que espelham o Outono tardio, correr sem as molduras diligentes, até não sermos as juras que ofendem as mãos tingidas de memória. Deixamos o arrependimento vincendo na boca do copo por onde bebemos o aroma dos dias e esconjuramos as farsas sem remédio num verso arrematado ao acaso. 

O juro da jura é a mentira apalavrada.

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