Roíam as unhas. Militantemente. Ou escandalosamente, consoante os olhares e as sensibilidades ultrajadas. Não interessava tanto o roer de unhas como os limoeiros em ano excecional, os frutos superando a folhagem de tal modo que o amarelo dos frutos se sobrepunha ao verde da folhagem. O xisto era longe. Os socalcos também. O rio oferecia o seu caudal à espera de contemplação. O ar inspirado era um nómada que se amotinava contra a duração do tempo. Viagens, contadas pelos dedos – os novos mandamentos mandam calcular a pegada ecológica e não querem ser sobressaltados por pesadelos protagonizados pelo Green Peace nem querem ser assombrados por discursos da jovem da moda. Roíam as unhas para não ficarem iracundos com as doenças do mundo. Diziam: é exagero teu, o mundo nunca esteve tão bem. E tu: o mundo, nunca esteve tão mal. (Fizeste questão de enxertar a vírgula, que faz toda a diferença.) Os miúdos celebram a saída das aulas. Celebram duplamente: amanhã é feriado e depois só há mais um dia até ao fim de semana. Aprenderam com o radialista com elevada consciência de classe que bendiz o fim de semana quando os dias da semana se encurtam na sua véspera: todo o descanso é merecido, o trabalho (será que conhece Agostinho da Silva?) soa a insulto à dignidade das pessoas. Trabalhar, só porque tem de ser. Aposta-se que os miúdos nunca ouviram aquele radialista, mas cedo aprenderam a lição. Na outra trincheira, os viciados na droga do trabalho. O tempo escasseia sempre, tantos os afazeres que até estavam capazes de pedir a intercessão divina pela desmultiplicação do tempo (sonham, talvez, com um dia com quarenta e três horas). Estão sempre assoberbados por trabalho. Nem têm tempo para roer as unhas, ou para apreciar a doçura que a paisagem bucólica tem para oferecer. Descansar, mesmo quando estão de férias, vai contra a linhagem do sangue. Não sabem do paradeiro do xisto, ou dos socalcos, ou das vinhas (a não ser quando se armam em escansões). Suspeitam que encontram o rio quando a colina aplana. Preferem outras dependências. E delas não se afirme que são salubres. Menos mal, não roem as unhas.
26.4.24
De um fôlego só
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