30.8.24

O esconderijo dos morcegos (short stories #465)

Tricky, “Christiansands”, in https://www.youtube.com/watch?v=0vtRiHt73iY

          Às vezes, a noite não amedrontava. Os olhos escurecidos combinavam com os vultos que disfarçavam a noite de medo, mas os olhos albinos precisavam de refúgio. Aprendessem com os morcegos, resguardados nos seus anónimos castelos para não serem derrotados pelo excesso de melanina. Ao menor sinal de penumbra, os morcegos libertavam-se da hibernação diária – e aqui a palavra era substantiva e adjetiva ao mesmo tempo – e cozinhavam coreografias desorganizadas, como se precisassem de consagrar a liberdade e a ela tivessem de associar o desmaiar da luz solar. Os morcegos não estavam sintonizados com as pessoas: no instalar da penumbra, as pessoas começam a desligar da corrente e processam a preparação para o descanso e o sono. Os morcegos só não estavam desemparelhados dos boémios, que tinham a noite como morada e dormiam de dia sem se preocuparem com a censura dos habilitados para o trabalho (dizem, em abono dos lugares-comuns, os responsáveis). Talvez os morcegos também fossem irresponsáveis. Só não contribuam para a indústria da boémia e as indústrias satélites que a acompanham nas desoras e na mundanidade. A cegueira dos morcegos ultrapassava o simbolismo: na preparação das metáforas, os morcegos eram os pares ideais para as congeminações da boémia e dos seus intérpretes. Ao contrário dos boémios, os morcegos não se arrastavam no dia seguinte, não sentiam o peso exacerbado da cabeça, as entranhas incendiadas, a vontade de não ter vontade de fazer o que fosse. A noite reanimava-os. Sentia-se o alívio dos morcegos quando o dia ia para inventário. E a indiferença das pessoas em geral, já por conta da apatia de quem começa a desligar da corrente antes de ser refém do sono que conduzia ao dia seguinte. Durante o dia, os morcegos eram parceiros dos boémios. À noite separavam-se os seus caminhos.

29.8.24

Querido alguém – apóstrofe da silly season (short stories #464)

The Breeders, “Divine Hammer” (Live in Big Sur), in https://www.youtube.com/watch?v=fhIsV7yENbQ

          Querido alguém: dir-te-ia, um dia, que não me sento na fobia. E tu, do avesso vestido, farias gestos avulsos para esconjurar o. Soubesse o teu nome e não te tratava por alguém; valha-te a minha generosidade, que dela estou particularmente imbuído nesta época de, antes que me desse para não usar a fórmula carinhosa que encima a missiva. Os animais bebem. Tu também. Eles não bebem álcool. As tuas são bebedeiras sãs: andas sempre a dizer, arqueado pela ressaca, que se não fosse a bebida que bebes em avantajadas doses não serias. Depois soltam-se os garfos sorumbáticos, aproveitando-se da distração das. São as aias que bisbilhotam na ossatura do tempo: se os amos soubessem, e se fossem dados aos cálculos financeiros, atiravam às fuças das aias o tanto que custam à hora, mas não supõem a língua afiada das. Haja quem meta sindicatos pelo meio da poda. Não se vituperam as oprimidas do trabalho doméstico, para uma ascensional estrela do teatro não escrever uma sequela de uma peça que se confundia com um comício do partido da sua preferência. Já não há mordomos, ao menos – é pena, para se poder especular com as costuras da igualdade da jovem encenadora. Talvez seja das miragens que se insinuam entre as sombras. Os marcos vetustos conservam-se com firmeza, e não é em formol. Não protestem os conservadores: seu é o domínio das convenções, por enquanto. Daqui por uns tempos, quando o horizonte tiver encruzado o equinócio das bestas, os edis serão apenas palavrosas figuras que oferecem uma mão cheia de nada. Acusem a silly season. Isso, façam assim de conta, só para sentirem se as fundações do fingimento não devoram os vossos nomes por dentro. Enquanto estiverem à revelia, fiquemo-nos pelo querido alguém. Pois um alguém é o arnês de um nome qualquer. 

28.8.24

O homem que comprava sempre sapatos pequenos (short stories #463)

Mysterines, “Skin Ya Teeth”, in https://www.youtube.com/watch?v=ema3-It1nvk

          Houve um primeiro-ministro de um país que, traumatizado pela baixa estatura, e talvez por imaginar que a grandeza (perdida) da pátria exigia um estadista à altura, se fez fotografar montado nuns sapatos que não disfarçavam um leve tacão alto que tinha o condão de disfarçar a baixeza (sem segundos sentidos) do estadista. O introito pôs-se a jeito de um lugar-comum: os homens (e as mulheres também) não se medem aos palmos. Arregaçar os calcanhares para parecer mais alto é uma farsa. Não são aqueles centímetros propulsionados pelo tacão extemporâneo que trazem grandeza (é de estatura que se continua a tratar) a uma personagem. Nem que se arrematasse o caminho da metáforas, ou de outras figuras de estilo que compensassem a baixa estatura do estadista, ele deixava de ser estadista. Não foi a tempo, o estadista, de se preocupar com o essencial, enredado pela farsa do fingimento presente na ênfase às coisas tão acessórias. Havia outra teoria (portanto, alternativa): o estadista não estava preocupado em “estaduar”, a sua grande vergonha era aparecer nas cerimónias públicas na companhia da consorte, uma cantora afamada, que estacionava alguns centímetros acima dele. A pose marialva e o pundonor da personagem cuidavam do demais. Em vez de se perder com rituais espúrios, convencido que anestesiava os súbditos, o estadista foi apanhado a caçar um sapato que tinha um número acima da sua medida. Afinal, tinham sido todos enganados pelas aparências. O homem que aparentava calçar sempre sapatos pequenos foi acometido por outra, desta vez muito material, mania das grandezas. Saiu derrotado nas urnas onde se contam os votos. E depois, humilhado por ostentar uns sapatos afinal acima do tamanho dos seus pés. Um pouco como aquelas figuras circenses que se atrapalham a si mesmas ao caminharem em cima de sapatos descomunais. Só lhe faltava o pompom vermelho em forma de nariz do seu antecessor, quando encenou a rábula de um entregador de pizas para visitar a amante ao domicílio. 

27.8.24

A lua azul afinal era cor-de-laranja (short stories #462)

The Smiths, “There Is a Light That Never Goes Out”, in https://www.youtube.com/watch?v=C6vsTkKPq8s

          Muita gente acordada pela noite fora e não era por causa da boémia. Anunciada a lua azul – das notícias: a maior lua azul dos últimos anos e dos próximos –, indefetíveis e apenas curiosos mantiveram-se acordados e de olhar assestado ao céu. Esperavam que a neblina noturna se dissipasse, ela que parecia ter conspirado contra a atalaia dos peritos e dos apenas curiosos, perfilados à espera da revelação do fenómeno. Antes isso do que ver filmes ridiculamente românticos, prosperar no estudo da beligerância em curso, esconjurar fantasmas com recurso à superstição, ou apenas a entrega à modorra espaçada entre o nada fazer e a repetição da atividade anterior. E a neblina, persistente, continuava a embaciar o céu. Por este andar, a lua era de cor nenhuma, sitiada no avesso das nuvens que entristeciam os simplesmente curiosos e os devotos da matéria. Os mais inquietos procuravam meios alternativos de espreitar a lua azul: havia quem transmitisse ao vivo de outros lugares não contaminados pelas nuvens conspirativas. Viam, por interposta lente, uma lua azul. Ao início desconfiaram se a cor da lua não estava adulterada: em vez do azul, as imagens reproduziam uma lua trespassada pelo cor-de-laranja. Os apenas curiosos começaram a desconfiar que a lua azul era uma farsa (“como se pode chamar azul a algo que é manifestamente cor-de-laranja?”). Começaram a desmobilizar, os simplesmente curiosos, pouco faltando para acusarem a encenação, imputando-lhe desonestidade intelectual – e bradaram aos céus, que de cientistas estabelecidos não se admite desonestidade intelectual. Os que adiaram o sono por meia hora puderam confirmar ao vivo que a lua azul sempre era cor-de-laranja. A neblina extinguiu-se a tempo. Não protestaram contra a confusão cromática que tomou conta da lua. Anestesiados pelo sortilégio, foram condescendentes: “o Mar Vermelho também não é vermelho”, aquiesceram.

26.8.24

Pólen (short stories #461)

Tindersticks, “Always a Stranger”, in https://www.youtube.com/watch?v=k5Cn17azjaA

          Os tufos caramelizados pendem sobre as mãos, que já não perseguem o dia sozinhas. Um vago aroma prende-se às nuvens avulsas que parecem roubar um pedaço de futuro, tão belo se apresenta o quadro sentado sobre os alicerces dos céu. As palavras soam a música. A música é parente da poesia. Umas vagas partículas dançam sob os auspícios do vento, que ora abranda, ora acelera, sem respirar formalismos. A pele vetusta ordena-se contra a ditadura do tempo. Vozes contundentes desenham as sílabas, as palavras são obra de arquitetos debruçados sobre os estiradores, contemplando uma paisagem inspiradora. O entardecer deixou de ser sinónimo de angústia; deixou de ser o prelúdio de uma noite assustadoramente silenciosa, cúmplice da solidão cadavérica. Agora o entardecer é apenas uma estrofe que se antecipa ao brilho do olhar. O dia já não fica viúvo quando o relógio se aproxima da meia-noite. Até pela noite tudo é polinizado, mesmo que muitas sejam as pessoas que ficaram reféns do sono. Também o sono deixou de ser a pátria onde se soergue a angústia; é por dentro dele que gravitam os sonhos, e nem todos são pesadelos que parecem tsunamis que arrasam tudo. Esses sonhos beneméritos são ateados pelo pólen açambarcado ao mel escondido sob o olhar diligente dos almocreves. As cruzes ensinam o peito a ser obediente – era nesta frase carregada de luto, carregada de obediência sem critério, que se desfazia o futuro nos escombros do passado. Mas agora é agora. A terra do mel que não precisa de abelhas, do pólen colhido por operários sem filiação. O miradouro nasce das mãos incansáveis. Os dedos volteiam, desenham palavras avulsas na tela ao acaso firmada no céu. Só eles sabem o que escrevem. É segredo. Um segredo que extingue a desconfiança no tempo que urge avançar. 

23.8.24

Banalidades sobre o futuro (os lugares-comuns da política)

The Liminãnas, “Je M’en Vais”, in https://www.youtube.com/watch?v=5dKhkCjqt-A

É recorrente: anúncios de grandes obras públicas, quase sempre infraestruturas, acompanhados por uma comunicação que explica como estão ao serviço de um futuro melhor. Como se fosse preciso convencer o público – que paga uma parte considerável dessas obras através dos impostos que paga – que as infraestruturas vão mudar a sua vida e para melhor. A comunicação assenta numa mensagem pueril: estamos a construir esta infraestrutura para o bem do seu bem-estar futuro, caro contribuinte, caso ainda não tenha dado conta. 

A comunicação assim concebida é uma redundância. Quando um perito em comunicação contratado pelos poderes públicos precisa de explicar que a obra pública está pensada para que o futuro seja melhor, dá a impressão que está a infantilizar o destinatário (aquele que paga a obra com os seus impostos, descontado o habitual subsídio da União Europeia). Passa pela cabeça de alguém que uma obra pública, desde as pequenas obras até aos grandes projetos, seja pensada para piorar o futuro? A retórica do futuro melhor associada às políticas públicas devia estar fora do radar dos peritos de comunicação avençados dos poderes públicos. Cabe na cabeça de alguém que um mandante tome decisões com o propósito de piorar o futuro?

O futuro melhor é uma tautologia, se partirmos do pressuposto que o cidadão-contribuinte aceita outro pressuposto: quem governa e toma decisões para o futuro quer legar um futuro melhor aos cidadãos-contribuintes. Pensar o contrário é um contrassenso. O cidadão-contribuinte pode discordar dos efeitos previstos pelo mandante, pode até imputar-lhe uma overdose de incompetência – o resto está por conta do subjetivismo da análise. Por mais que o cidadão-contribuinte esteja nos antípodas do mandante, não duvida que o mandante é procurador de um futuro melhor, mesmo que discorde que os efeitos previsíveis da sua ação correspondam a esse futuro radioso.

Explicar, como se estivesse a explicar o bê-á-bá às criancinhas, que esta ou aquela obra estão destinadas a melhorar o futuro das gerações atuais e futuras, é como se fosse necessário ao meteorologista explicar que as pessoas devem levar o guarda-chuva porque se prevê que o dia seguinte seja passado a chuva. 

O recurso ao lugar-comum contamina a comunicação política. O cidadão-contribuinte não é uma criança que precisa de explicações básicas sobre o básico dos efeitos esperados de uma obra pública. Nem é tão distraído que se justifique o recurso reiterado à trivialidade do futuro melhor. Os gurus da comunicação podem virar a página, deixando de lado a lógica de um futuro melhor. O óbvio não precisa de explicação.

22.8.24

Perímetro abdominal (short stories #460)

Explosions in the Sky, “Postcard from 1952” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=n7UrcBN045k

          Um monumento nacional (e os bigodes também). Adiposidades acumuladas, o estreito túnel que pode desaguar na finitude quando a patologia fulminante dá notícias (não se pode dizer inesperadas). Largueza de perímetro abdominal, contra o desaparecimento em combate do falo que deixou de servir para o sexo, contra o simples gesto de baixar o dorso porque é preciso reapertar os cordões de um sapato (a menos que, adaptados, deixem de usar sapatos com cordões). Num corpulento perímetro abdominal, o património de uma nutrição mal aconselhada. Não desistem e aculturam-se: ostentam, em falsa ufania, as arredondadas, abauladas, barrigas, num fingimento que os engana, como se houvesse certames onde se medem os perímetros abdominais e os números maiores levassem a palma, sob o aplauso demorado e a inveja indisfarçável dos concorrentes forçados a ovacionar o triunfante. Refugiam-se nas modalidades em que se tornaram talentosos: o sedentarismo de quem mal se move; o devorar comida sem critério, em banquetes que demoram até o sono depor a gula; o círculo vicioso de quem alia a comida gongórica com as dificuldades de locomoção e a preguiça instalada, até serem corpos disformes candidatos ao próximo enfarte do miocárdio. Arrastam os corpos doentes que passam o tempo a inchar, ocupando espaço vital ao tempo de vida, colonizados pelo estertor que se aproxima a cada prândio ciclópico que se arrasta pelas horas. O guarda-fatos propende para a desatualização. Corpos que crescem com a tensão do tempo exigem roupagem com números mais elevados. As camas precisam de reforço. As viagens de avião passam a ser proibitivas (e não é pela carestia). O cansaço é prematuro, alimentado pelo sedentarismo, numa espiral que os aproxima do abismo. Quando espreitam pelo retrovisor, com a ajuda de um álbum de fotografias que passa em revista o passado, deixam de se rever nas fotografias de antanho. Já não sabem a quantos centímetros responde o perímetro abdominal.

21.8.24

As gentes das outras terras (short stories #459)

Gorillaz ft. De La Soul, “Feel Good Inc” (live on Lettermann), in https://www.youtube.com/watch?v=WIZW4SGVbhA

          Não podiam ser capciosos – diziam, mais como autoindulgência do que como gesto genuíno: as outras gentes não eram assim tão diferentes; se fossem passar a pente fino, os grupos sanguíneos seriam prova de consanguinidade, as ossaturas teriam idênticos teores de cálcio, e as bocas, apesar de falarem idiomas diferentes, obedeciam ao mesmo receituário nos manuais de anatomia.  Os outros eram uma dádiva. Antes de eles serem tantos que parecem em maior número, o lugar vegetava numa promessa de decadência. Dizia-se que foram as gentes das outras terras que salvaram o lugar da decadência – uma promessa incumprida e que paradoxalmente saciou as vontades locais. A favor das gentes das outras terras concorria a memória não distante: os antepassados das gentes locais tinham sido forasteiros em lugares distantes para onde viajaram em permanência. Não podiam ser cultores da dissidência de juízos. O que tinha sido reclamado a favor dos antepassados nos lugares onde foram forasteiros tinha de ser aplicado a favor das gentes das outras terras que vinham com sede de conhecimento do lugar. Era a vez das gentes deste lugar serem cosmopolitas. Era seu o imperativo da hospitalidade. Quer a favor das gentes das outras terras que escolheram este lugar para fugir da miséria, quer a favor das gentes de outras terras que apenas usavam o lúdico direito de conhecerem terras diferentes das suas. Alguns nativos usavam diferentes medidas para apurarem a reação. Eram tolerantes com as gentes de outras terras que eram visitante efémeros. Desconfiavam das gentes de outras terras que queriam ser afins aos nativos; alguns exerciam indisfarçável xenofobia, rechaçando-os com atávicas palavras de ordem. No primeiro caso, disfarçavam a estranheza do outro porque ele contribuía para a economia local. No segundo caso, deixavam vir à superfície a estultícia da vacina contra o outro. 

20.8.24

E tu, compravas um carro chinês?

The Sugarcubes, “Motorcrash”, in https://www.youtube.com/watch?v=vz9WNOkVTWo

Os lugares-comuns, averbados pela voz popular, transitam por avenidas denunciadas pelos que patrulham o pensamento correto. A certa altura, ficou popularizado o mito urbano (que, em rigor, não passa de uma mentira passada de boca em boca) sobre as “lojas dos chineses”. Estas lojas receberiam alcavalas do Estado, como se ao Estado competisse dar condições vantajosas às lojas chinesas em detrimento da concorrência nacional (e de outros países). Na voz do povo pressentia-se um racismo mal disfarçado em relação aos “chineses”. (E pressentia-se uma grosseira ignorância.) Se fosse feita uma investigação, aposto que não demorava até se perceber que muitos dos que vocalizavam tamanho racismo eram assíduos clientes das “lojas dos chineses” (mas a incoerência não é um pecado como muitos juízes públicos apreciam denunciar).

Quando apareceram automóveis que se emanciparam de combustíveis fósseis, as marcas chinesas começaram a ganhar mercado. Hoje, se não fosse pelas restrições aprovadas pela União Europeia, que pretendem compensar as vantagens das marcas chinesas, estes são os automóveis mais apetecíveis na comparação dos preços. Nas ruas, circulam cada vez mais automóveis elétricos chineses. Já estamos habituados.

Só uma investigação sociológica aturada permitiria saber se os mesmos que popularizaram o mito das “lojas dos chineses”, transmitindo um racismo latente contra os chineses, estão em condições de comprar automóveis fabricados na China. Deve haver alguma sobreposição: não se atire apenas para a falta de conhecimentos (ou para a ignorância pura) o labéu do racismo forjado contra os chineses, que testemunhei alguns episódios de gente aparentemente bem documentada a reproduzir a mesma falsidade sobre as “lojas dos chineses”. Alguns desses bem-informados são pessoas de posses e candidatos óbvios à compra de carros vindos da China. Repita-se: a incoerência não é um pecado mortal (digo: não é, sequer, um pecado).

A pergunta em levitação é a seguinte: e tu, compravas um automóvel fabricado na China? A pergunta tem destinatário geral, não é apenas destinada àqueles que caíram na armadilha do seu próprio logro, quando dantes se insurgiam contra as “lojas dos chineses” e hoje aparecem nas listas de espera para a compra de automóveis feitos na China. Conseguimo-nos despir de preconceitos (os que os tiverem) para encomendarmos um carro elétrico feito na China? É que muitos outros se habituaram a considerar o “made in China” como cópias de fraca qualidade, a representação do barato que sai caro; mantemos esse padrão, ou alteramo-lo para figurarmos na lista de espera de automóveis chineses?

O episódio encerra duas conclusões. A primeira encontra-se com a maré imparável da globalização. Permite a países que não figuravam entre o escol dos industrializados serem referências na concorrência internacional. As oportunidades não estão vedadas aos que não conseguem singrar num determinado momento. A segunda atesta a conversão do comunismo (de um certo comunismo) às virtudes do “grande capital” (usando um expressão tão cara aos comunistas locais). 

19.8.24

A abrangência de ser abrangente

Portishead, “Mysterones”, in https://www.youtube.com/watch?v=CtxA_MP-9oE

De forma abrangente, quando se quer dizer que uma coisa, ou uma ideia, ou uma teoria, ou uma prática, cobre uma panóplia de coisas, ideias, teorias ou práticas, depressa se arranja o rótulo a preceito: dele(a)(s) se diz ser(em) abrangente(s). 

É um pouco como o abastardamento do fascista: hoje, quando alguém (de preferência situado às esquerdas) quer depreciar um oponente, carrega-lhe o vínculo pejorativo de fascista. Fascista tornou-se no adjetivo desqualificativo por excelência, ainda que, muitas das vezes, o “fascista” (as aspas aparecem com pleno significado) não se enquadre no que é um fascista quando a História e a Ciência Política são usadas como quadros teóricos de referência. As adulterações semânticas cristalizam-se nos usos e na fala que se socializa, condenando ao atavismo o uso rigoroso de um vocábulo. Hoje, se queres dizer mal do teu oponente político, atira-lhe com o fardo do fascista. Até pode acontecer que o “fascista” não acuse o toque, sabendo, como sabe, que não é fascista (na rigorosa aceção do termo), mas o acusador sente a interior gratificação de ter desqualificado o outro. Pelo caminho, o idioma – e, pior, certos termos de referência – abastarda-se, favorecendo o abastardamento dos seus fautores (sem, contudo, darem conta, tão olimpicamente convencidos do seu triunfo).

Hoje acontece o mesmo com o vocábulo “abrangente”. Quando alguém quer dizer que algo tem um largo espectro, que cobre uma multiplicidade de fatores, ou que se dispõe a ser explicação válida para uma plêiade de fatores, logo arrasta consigo o adjetivo “abrangente”. O dicionário não deixa mentir: abrangente é o “que abrange ou inclui; inclusivo; que se aplica a vários casos; amplo; vasto” (Dicionário Infopédia online). O uso indiscriminado de “abrangente” expõe-se à abrangência de quem não é diligente ao ponto de encontrar termos que sejam o atestado rigoroso do que pretendem explicar. São as palavras pronto-a-vestir, que perdem validade por se prestarem a explicar tudo e um par de botas. 

Aos seguidores do abrangente deixa-se um conselho: quando quiserem qualificar a “abrangência” do que pretendem explicar, digam que a coisa, a ideia, a teoria ou a prática em questão são holísticas. Até lhes dá um ar mais erudito.

16.8.24

Em lugar incerto, versão do dia seguinte (short stories #458)

PJ Harvey, “Glorious Land” (live at Oslo), in https://www.youtube.com/watch?v=y_xkHs1yQzs

          Do pináculo de um sonho acordou sem saber as coordenadas. O lugar era anónimo, uma paisagem indiferente. Um lugar ermo, certamente. A noite escura cavava a desorientação. À noite somava-se um céu carregado de nuvens que ocultava as estrelas, fermentando uma sensação de abandono. Para onde olhasse, o céu intensamente negro reforçava a certeza do lugar incerto. Até ao horizonte não conseguia observar nada que desse uma pista onde se encontrava. Caiu no sono – ou num sonho por dentro do sonho, essa matéria intangível que às vezes rivaliza com as obras mais surrealistas. Voltou a acordar, agora sob um sol intenso. Dentro de uma nau, involuntariamente nauta, sozinho numa embarcação que seria fantasma se não fosse seu inquilino. À volta, só mar. Um mar fundido com o céu quando emagrecia no fio do horizonte. A nau avançava de acordo com os humores do vento. Podia ser que o vento fosse favorável e que levasse a nau para um lugar que deixasse de ser incerto. Passaram três dias e duas noites e continuava a ser o único passageiro da embarcação. Não se podia dizer que fosse seu tripulante: a ponte de onde se comanda a nau estava fechada com um cadeado que não conseguiu destruir. À terceira noite veio um sonho que o trouxe para uma selva. Sob os maus auspícios de um calor tropical, por onde quer que irrompesse só encontrava mato e arvoredo, às vezes quase inexpugnável. Agora não estava sozinho. A fauna abundante vigiava-o, entre mosquitos e animais de grande porte. A certa altura, não podia avançar. À sua frente, um precipício albergava uma queda de água temível. Hesitou, entre voltar para trás (seria perder tempo) e saltar no vazio (a morte muito provável). Cansado, ajeitou umas folhas carnudas e adormeceu. Os lugares só são incertos até lhe descobrirmos o avesso.

15.8.24

Em lugar incerto (short stories #457)

The Cure, “Charlotte Sometimes”, in https://www.youtube.com/watch?v=4KeII31qyck

             Disse ao paradoxo para não ser teimoso. As contradições só aleijavam os outros. Não tutelava contradições (nem aceitava que o acusassem de incoerência). A partir do momento em que se contradizia, a contradição deixava de ser: a segunda proclamação contrariava a primeira: a segunda destronava a primeira, datada e inválida. Não era um ardil retórico. Nem fugia das contradições internas e que a teimosia impedia de confessar, para não estar à mercê dos libelos acusatórios dos que estão de atalaia às incoerências dos outros. Em sua defesa, invocava o princípio da mudança de posição sobre os temas que subiam a palco. E perguntava, devolvendo o opróbrio aos que se apressavam a destutelar a sua coerência: quem nunca tinha mudado de ideias? Era assíduo na mudança de ideias e nas impressões que, depois de serem primeiras, ganhavam credenciais quando amadureciam e deixavam de ser primeiras impressões. Costumava dizer que as primeiras impressões são efémeras, não costumam triunfar no presépio onde fermentam as impressões concorrentes. Só os inocentes, ou os dogmáticos, é que abraçavam as mesmas ideias e não aceitavam que elas pudessem mudar. Incoerentes – e não havia mal nenhum na incoerência – são os eternamente fieis às ideias que são insuscetíveis de mudança. Por isso determinou que as ideias vagueiam em lugar incerto, pousam em diferentes cais que são chamados pelos tempos diferentes, as circunstâncias diferentes, as pessoas diferentes que se atravessam na vida de alguém. O que pertence a um lugar incerto não transige com o anátema da certeza, com a impertinência própria dos que se assenhoreiam da rigidez que trespassa os diferentes tempos. Aceitar o lugar incerto das ideias era o crivo certo para lidar com o devir também ele incerto. Se no lugar incerto vingassem paradoxos não era como despovoar a lisura da alma. 

14.8.24

Os gatos interromperam a noite (short stories #456)

Indignu, “Santa Helena”, in https://www.youtube.com/watch?v=aQj2guLndpY

Pelo rumor da noite, os gatos conspiram contra o silêncio enquanto bulham pelo território dominante. O sono leve inquieta-se com os miados desbragados dos gatos beligerantes. O sono exilado desassossega os que foram acordados pela estridência do esgrima felino. Não conseguem reatar o sono. E a noite que devia ser dedicada ao sono ainda vai a meio. Os lençóis começam a ficar remexidos de tantas voltas na cama. A noite ainda vai a meio: é cedo para sair da cama, mas o sono exilado não ajuda a domar o desassossego. Levanta-se e vai à janela na companhia de uma chávena de chá. Se ao menos conseguisse ver os gatos que o acordaram; não era para liquidar a vingança, que não concebe a violência nos gatos: era só para saber quem o retirou do sono. Mas a noite estorva a visão. Apenas consegue ver a penumbra que invade o campo de visão, as silhuetas das árvores e dos arbustos, os bancos do jardim mais ao longe, a colina que começa a descer até ao lago artificial. De gatos, nem movimentos furtivos, típicos dos gatos que deambulam na solidão da noite. Pois os gatos não são gregários, como provam as constantes bulhas pela soberania do território (e pelas gatas residentes). As achas do pensamento estavam por todo o lado, incensando a sala que se escondia da penumbra exterior. Ligou a televisão e enfiou-se no sofá, enquanto o dedo indicador deslizava pela tecla do comando num zapping desinteressado. Adormeceu. A sonhar com as querelas desexemplares dos humanos, que não têm legitimidade para censurar as desinteligências dos gatos. A meio do sono, acordou outra vez sobressaltado: era o seu gato a massajá-lo com os dedos peludos, a adivinhar os pesadelos com outros gatos. Afinal, eles são mais territoriais do que se pensa.

13.8.24

Engenharia do ambiente

David Byrne, “This Must Be a Place” (live Santiago do Chile), in https://www.youtube.com/watch?v=CSDvcHE48zk

Condiz o prazo com a maré, enquanto o navio desce o rio e espera que a eclusa liberte a água para o navio dar o salto de peixe. A eclusa esvazia o suficiente para o navio afocinhar na maré inferior. Alguns passageiros contemplam com admiração. No convés, três turistas apreciam os passageiros que apreciam o nivelamento do navio. “Devem ser engenheiros”, pressagiam, desinteressados, com a ajuda do álcool debitado por conta dos gin tónicos encomendados. Poucos saem do convés, onde têm o beneplácito da sombra. O vale do rio aloja um Verão infernal. As pessoas fogem das horas quentes, como se o sol estivesse destinado a agredir quem ousa desfiá-lo. O sol é amigo das pessoas: se elas arriscarem afrontar o sol, as marcas na pele são o aviso do sol para memória futura. É um pouco como o caudal do rio. Os “engenheiros” comentam como é possível o navio encaixar num caudal por sua vez encaixado em tão alcantilado vale. As boias de sinalização ajudam o navio (como o sol avisa os destemidos para não o serem). O navio move-se com o vagar típico das embarcações com este calado. Circunda as boias para não acertar nos rochedos submersos, a continuação das escarpas pedregosas que se despenham vertiginosamente no rio. Comenta-se a perícia do comandante do navio, à medida da perícia da natureza que se esculpiu com a roupagem do sortilégio. Às vezes, o canal por onde desliza o navio parece ter sido feita à sua medida. Há boias que roçam no casco. Com atenção, há passageiros que conseguem avistar as rochas delimitadas pelas boias. A água do rio é nítida, com a ajuda de outros engenheiros que aprenderam a fazer o tratamento das águas sujas que desaguavam no rio. Com a bênção dos “engenheiros” embarcados, os cálices de champanhe zunem em homenagem à engenharia do ambiente.

12.8.24

O eleitor que fez a diferença

Max Richter, “Late and Soon”, in https://www.youtube.com/watch?v=PaWQOUGjXXc

Era uma freguesia pequena – 80 eleitores. 

(Antes de uma relva daninha ter inventado uma reforma das freguesias que ditou a aglutinação de freguesias pequenas num todo maior.)

Na eleição local, o partido A teve vinte e quatro votos e o partido B vinte e três. Vinte eleitores não participaram na eleição. O presidente da junta cessante perdeu a reeleição por um voto. 

No dia seguinte, em conversa sobre a atualidade da véspera, falou-se de eleições. A funcionária do hotel, que estava de plantão no dia das eleições e não foi a tempo de se inscrever no voto antecipado, estava convencida que ia pertencer ao contingente da abstenção. Não era a sua vontade: apesar de não se interessar pela “política”, nunca faltou a um ato eleitoral (tirando aquela vez em que foi de lua-de-mel e ainda não havia voto antecipado). À última hora, conseguiu sair mais cedo do hotel. Como o trânsito estava de feição, chegou à aldeia três minutos antes do encerramento das mesas de voto.  Foi a última eleitora admitida a voto. 

(Quando saiu da mesa de voto, cruzou-se com um vizinho estroina, acabado de acordar, que se apressou a entrar na escola. Já passavam dois minutos das dezanove horas, foi atirado para o número dos abstencionistas.)

A contagem dos votos foi excitante. Era um voto para o partido A, outro para o partido B, depois mais outro para este partido e um voto mais para o partido A, intercalando um ou outro voto nas outras listas a concurso. À medida que os votos foram contados, nenhum dos partidos teve mais do que um voto do que o rival. Faltavam dois boletins de voto para o apuramento dos resultados. O partido A e o partido B estavam empatados. O primeiro voto contou como nulo: depois de muita discussão entre os delegados da mesa de voto e os representantes das listas, não era possível validar aquele voto que seria no partido B: a cruz, trémula, mal cabia dentro da quadrícula. O último voto foi contabilizado a favor do partido A. Foi o voto que desempatou. O voto que validou a vitória deste partido.

Faltava saber se os votos foram apurados por ordem de colocação na urna, ou se foram baralhados, como quem prepara um jogo de cartas, antes de ser aberta a urna. Ninguém o confidenciou. Ficou por saber se foi o voto da funcionária do hotel que desempatou a eleição. 

Especulou-se, na mesa do café, quando ela disse que votou três minutos antes do encerramento da mesa de voto e que ninguém foi admitido a votar depois. Os outros tentaram saber em que votou. Ela não se descaiu. Os outros continuaram a especular: foi o voto dela que desempatou a eleição. Ela sorriu, envergonhadamente, deixando vir ao de cima um ligeiro corar. Eles reforçaram a convicção. Um deles lembrou-se: “o presidente da junta [que perdeu a eleição]não aprovou o teu pedido para construção do anexo da casa...”

Foi o voto dela que contou. Os outros votos foram todos inúteis.

9.8.24

Morada desconhecida (fábrica dos sonhos)

Sons of Kemet, “Play Mass”, in https://www.youtube.com/watch?v=BPFRBTS39Vo

Ninguém sabe onde fica a fábrica dos sonhos. Ninguém sabe se alguém procurou saber onde são fabricados os sonhos. Importa descobrir a morada dos sonhos? Se alguém soubesse e não escondesse o segredo, os sonhos eram diferentes?

Faça-se de conta que as pessoas descobriam a sede dos sonhos e acorriam às instalações onde os sonhos são congeminados. Ao entrarem no edifício, a sua intenção seria tomar conta do processo dos sonhos para os tornarem compatíveis com os seus desejos e preferências? As pessoas têm a certeza que queriam adulterar os sonhos? Teriam a noção de como estariam a colonizar os sonhos e eles deixariam de estar fora do perímetro da sua vontade? Acorrentar os sonhos à vontade das pessoas é como liquidar os sonhos, que deixariam de ter esse nome.

Os sonhos podem ser corpos estranhos que inquietam as pessoas que são assaltadas por eles. A sua reação hostil aos sonhos que se transfiguram em pesadelos é o aval para o desejo inconfessável de serem os reguladores dos seus próprios sonhos. Assim como assim, as pessoas vão sendo instruídas numa cidadania que as atira para o regaço de uma proteção paternalista; desabituaram-se do livre-arbítrio e de terçarem os seus recursos quando são incomodadas por adversidades. 

Ou então, a descoberta da fábrica dos sonhos ia ao encontro de motivos lúdicos, a incorrigível curiosidade de perceber as estruturas e os mecanismos que, de outro modo, ficam imersos numa água baça que impede o entendimento. Esta curiosidade seria o incentivo para descobrir a morada dos sonhos. 

As pessoas não querem saber dos sonhos antes de eles terem lugar. Não querem interpretá-los a destempo, como se a sua decifração servisse para os travar. Muito menos seria sua intenção entrar no processo interno dos sonhos para serem autoras dos seus próprios sonhos. Porque perceberam que compensa haver domínios que estão fora da sua alçada. 

O acaso é um risco que aceitam para contrariar a pureza do princípio geral da previsibilidade que os torna domáveis a quem de (des)direito.

8.8.24

Quem quer ser herói? (Tirocínio) (short stories #454)

Haia Rani ft. Patrick Watson, “Dancing with Ghosts”, in https://www.youtube.com/watch?v=tP97_AQCldk

          Não se esqueçam da mitologia herdada de lustros anteriores: a condição de herói não é para qualquer um, só está ao alcance dos predestinados ou dos que se despem de si mesmos para darem a vida por outros ou por uma causa. O avanço da modernidade foi curando a doença do heroísmo. Outros ismos vieram a terreiro, mais populares e venais: o hedonismo, o individualismo, a rejeição do perfecionismo. Tal como as pessoas andam arredias dos lugares de culto (prova: apreciar a saída da missa e tentar apurar a idade média dos utentes; se o envelhecimento não for substituído por novas gerações, a crise da fé será ainda mais dolorosa), as pessoas fogem da bravata típica dos heróis. Declinam a hipótese de figurarem na galeria dos heróis que deixaram de existir porque decidiram ser heróis. O efémero que comanda o compasso do tempo moderno não se compadece com o desejo dos que se alistam no exército dos potenciais sacrificados em nome dos outros. Os mais jovens não se importam que os outros sejam heróis na sua vez. Pese embora um almirante com aspirações políticas ter resgatado, da sala mortuária onde jazem os comportamento de antanho, a palavra hierárquica que convoca a obediência acrítica, a linguagem castrense e a pose grave de candidato a estadista que promove o arregimentar de futuros apedeutas prontos a serem a próxima carne para canhão (agora que a guerra está mais na moda e o almirante acredita piamente que tropas lusas farão a diferença nos conflitos futuros). Talvez o almirante possa oferecer a autoria de um manual de instruções para os candidatos a herói aprenderem o que lhes falta para serem heróis. À falta de ocasiões, podem ir treinando. Em efabulações coletivas à volta de uma mesa onde jogam às cartas, bebericando minis fresquinhas e ouvindo as mentiras que os superiores, tão superlativos, contam de si mesmos.

7.8.24

Mousse de framboesa (short stories #453)

Deftones, “Knife Party”, in https://www.youtube.com/watch?v=dVMfISO9T1Q

        As framboesas medram, ainda agarradas aos arbustos que as ligam à fonte da vida. Não sabem que fado será o seu depois de colhidas. Não sabem se vão participar do recipiente das sobras – os frutos que não correspondem às normas de calibração, os frutos negligenciados pelos apanhadores e que ficaram estragados, os frutos que foram ingeridos às escondidas por um apanhador que não conseguiu resistir aos encantos da apanha. Não sabem se vão ser framboesas extemporâneas. Se não forem engrossar o cardápio dos desperdícios, as framboesas vão parar à banca de uma vendedora de fruta na feira de um lugar ao acaso, ou às prateleiras standard de uma grande superfície comercial, depois de devidamente etiquetadas. Será o apeadeiro antes de as framboesas chegarem ao consumidor final. Que pode ser uma pessoa a comprar mantimentos para o agregado familiar, um chefe de cozinha a fazer as compras dos ingredientes necessários para compor a ementa do restaurante, ou alguém que andava a passear pela grande superfície comercial e, amante de framboesas, prometeu-se uma iguaria entre duas refeições. As framboesas não sabem se vão ser ingeridas ao natural, misturadas com chantilly, servir de ornamento a um cocktail, ou de decoração de uma iguaria no restaurante que transforma a matéria-prima em gastronomia gourmet, ou processadas num puré que ajuda a confecionar uma sobremesa: mousse de framboesa, por exemplo. A ignorância das framboesas não previne as alterações de estatuto. Terminam o ciclo de vida no estômago de alguém. Esta constatação devia chegar para as framboesas não se inquietarem com o seu estatuto vindouro. Sejam ingeridas ao natural, apareçam como decoração numa bebida ou num iguaria agridoce, ou acabem processadas como ingrediente de uma sobremesa, acabam sempre da mesma maneira. A vida não é democrática. O que vem depois da morte, é. 

6.8.24

Relatório (short stories #452)

The Smile, “Read the Room”, in https://www.youtube.com/watch?v=n6vh4rfgdcE

Falassem as rosas para podermos ser heróis do tempo ébrio. Diríamos às planícies para não se intimidarem com o sol cravado nas flores encardidas, que a planície já se habituou a Verões febris. Às vezes detemo-nos, com a surpresa a estalar dentro da boca, e perguntamos como é possível haver arbustos e plantas e umas esparsas árvores num lugar tão inóspito, com o solo enrugado pelas fendas que se cavam entre a terra à medida da demorada ausência da chuva. Há corpos que desenvolvem insólitos modos de resistência. É como se o código genético soubesse ler as instruções do lugar e aprendesse a ser contexto. Sabendo que se omitir o dever de adaptação, o destino esperado é a extinção. Os organismos vivos amaciam a aridez. Por muito que estejam cobertos de poeira (a tarde costuma levantar um vento hostil que subleva o chão), estas plantas e arbustos travam a colonização da aridez. Como se fossem fadados para o milagre, conseguem viver tempo a fio sem ingerirem água, a não ser aquela que os seus finos tentáculos subterrâneos conseguem extrair das funduras, onde assomam, tímidos, uns lampejos de água freática. Nós, por dentro da zona de conforto urbana e habituados aos prazeres burgueses, estamos destreinados para as contrariedades. Talvez uma temporada num lugar ermo e inóspito, um retiro hermenêutico para conhecer as rugas da alma e apreciar a resistência de organismos que parecem viver no limiar do precipício, servisse de lição para deixarmos de ser personagens de porcelana, sempre à espera da menor contrariedade para nos socorrermos de gurus da alma que, dizem, oferecem curas férulas para as nossas incapacidades. Encomendássemos os sobressaltos à rotina e não seríamos peças de filigrana, tão frágeis que se estilhaçam à menor contrariedade. A inspeção interior é a sementeira de muitos relatórios. 

5.8.24

Falta de comparência

Cocteau Twins, “Pearly Dewdrops’ Drops” (live at OGWT), in https://www.youtube.com/watch?v=u0upaIZF_gA

Há dias que têm aquelas unhas arestosas que arranham a perfeição quimérica. Não são estorvos, apenas pequenas pinceladas que se intrometem entre a parede que era alva e um pincel que se candidata a ser autor material de um grafiti. 

O murmúrio soa mais alto do que a maresia matinal. Vozes apagadas sobem aos ouvidos como se fossem archotes materiais só à espera de uma combustão. Os bichos lambem o sangue do chão, atestando a repugnância. É preferível ser falta de comparência. A omissão das misérias não as rasura, mas um certo conforto, oportunista e ensimesmado, dispensa a verificação dessas misérias comissionadas.

Em contraste com o murmúrio, os fala-barato tartamudeiam palavras que se encavalitam. Antes estivessem à revelia do espetáculo tortuoso que afina o macabro. Instale-se um tribunal marcial para sentenciar a fala gongórica dos fala-barato. Sob protesto de uma casta, pese embora também se apoquente com a facúndia dos fala-barato: não se pode condená-los ao silêncio, têm o direito a bolçar as palavras habitualmente terroristas da semântica e da gramática sem lesar a sua liberdade de expressão. Não queiram cotejar duas liberdades antagónicas.

A fibra dos teimosos é das mais duras que se pode conceber. Como uma pele retirada da carcaça de um animal morto em lúdica caça (dizem os caçadores, que não são capazes de se colocar na posição da presa) e que se usa como matéria-prima de sapatos, casacos e carteiras de senhora. 

É invisível a tribo que se reúne em confraria assídua. Estão lá os nomes, as vozes, pressupõe-se que as bocas também, um módico de pensamento sob pena de ser uma tribo vacante. Os de fora, treinados para a superficialidade das aparências, concluem sem delongas: vai ser marcada falta de comparência a toda aquela gente. E mais: uma tribo sem gente deixou de ser uma tribo. Mesmo que mais tarde seja reanimada por antigos sócios e gente que quer sócia da confraria. 

A falta de comparência é a ausência que se arrasta num instante. Não peçam aos ausentes para fazerem prova de vida se eles abraçaram a resolução de serem intencionalmente ausentes. 

2.8.24

A faca nas costas

Paul Weller, “Flying Fish”, in https://www.youtube.com/watch?v=srYaVR6JEAs

A faca nas costas nem sempre doi. Enquanto não for sabido que a faca se acrescentou às costas da vítima, a mesma continuará indiferente por não saber que as costas têm o acrescento da faca. É como apalpar os efeitos de uma mentira: uma mentira só passa a ser quando se revela na pessoa por ela afetado. Até lá, é uma mentira reservada ao fautor, ao seu íntimo, não revelada; não existente para efeitos públicos.

O desconhecimento da faca cravada nas costas tem um efeito analgésico. O tempo que medeia entre a ferida infligida e a dor sentida depende de alguém interpelar a vítima, advertindo para a faca nas costas. Por não termos o condão de ver através das costas, não conseguimos ver uma faca espetada nas costas. O que o olhar não vê não arroteia a dor. 

O argumento pode ser virado do avesso: se o que o olhar não vê trava os efeitos dilacerantes da dor, uma dor que exista e que não seja descoberta pelo poder inquisitivo do olhar é uma dor fingidiça. A pesarosa vítima deve convocar a vontade e aplicar um corretivo sobre a dor: se o olhar não distingue a sua causa, ela não tem razão para existir. Muitos medicamentos depressa seriam condenados a vegetar na sua inutilidade.

Quando a faca nas costas é revelada, o que deve fazer quem a carrega? A resposta espontânea é propor que a faca seja arrancada das costas. É um corpo estranho que, ao ser descoberto, ateia a dor que antes estava ausente. Mas arrancar a faca das costas não pode ser feito por amadores. O corpo podia sangrar abundantemente até se esvair no seu estertor. 

A faca nas costas deve ser removida com cuidado e por conhecedores. Tem de ser manipulada com diligência para não mexer em partes sensíveis que estejam esquartejadas pela faca ainda pendida sobre as costas. Não sendo assim, é preferível deixar a faca nas costas e fazer o tirocínio sobre a dor suportável. 

1.8.24

Quem ficou em último lugar? (Olimpíadas do avesso)

Yves Tumor, “Heaven Surround Us Like a Hood”, in https://www.youtube.com/watch?v=tsOi9znJmEo

Aquele, moído, bordão: dos fracos não reza a História. Nos certames internacionais onde os atletas competem pela glória, por medalhas, prémios rendosos e valiosos contratos publicitários (não necessariamente por esta ordem), os fracos não passam de figurantes. Seus são os nomes que servem de ornamento às tabelas estatísticas dos certames que ficam a pender para memória futura. Nomes que ninguém lembrará. 

Como figurantes, deviam, assim mesmo, animar a atenção dos que dedicam atenção a estas competições periódicas. Quem daria importância a uma competição se a ela acorressem apenas meia dúzia de ases? Ter uma frequência numerosa engrandece as proezas dos que arrebatam as medalhas: foram esses que se distinguiram entre os demais, os muitos demais. Para se tirar esta conclusão, não se pode esquecer que sem os demais a conclusão seria invalidada. Não atingiriam tanta celebridade os medalhados se a proeza desportiva não fosse elogiada por ter sido obtida entre um acanhado contingente de concorrentes.

Nos vários desportos a concurso, há os favoritos e os outros. Mesmo não sendo favoritos, os outros não merecem tanta indiferença como a que resulta do tratamento noticioso e do arrematar de estatísticas da competição. Se a tabela classificativa ocupa uma página inteira, só os peritos deitam o olhar a todos os concorrentes. A maioria interrompe a função no limiar onde se esgotam as medalhas. Abaixo do bronze, é como se os concorrentes deixassem de importar, ou nem tivessem participado na competição. É um equívoco, desvaloriza a façanha dos medalhados. 

Está por escrever a narrativa dos que enchem os números da competição, mas nem sonham em ostentar uma medalha ao pescoço. Estarão convencidos do lugar-comum segundo o qual o que interessa é participar? Numa competição desportiva, ganhar não deve fazer parte da ambição de todos os concorrentes? Ou muitos deles, contentando-se em obter os mínimos que dão acesso à competição, sentem como se tivessem conquistado a sua, pessoal, medalha? É esta a narrativa dos atletas que navegam nas catacumbas das classificações, apenas fazendo número para dilatar a glória que assiste aos vencedores? Alguém fica deprimido se ficar em último lugar?

Estes, os indiferentes que fazem número, acordam sabendo que se ficarem no trigésimo sexto lugar e se aproximarem do seu recorde pessoal é como regressar a casa com uma medalha imaterial para lembrar no futuro. Porque nem todos podem ganhar e a muitos compete, no máximo, engrossar um contingente. 

Sem saberem, dão o seu contributo para a glória dos vencedores. Essa é a sua parte da vitória.