16.8.24

Em lugar incerto, versão do dia seguinte (short stories #458)

PJ Harvey, “Glorious Land” (live at Oslo), in https://www.youtube.com/watch?v=y_xkHs1yQzs

          Do pináculo de um sonho acordou sem saber as coordenadas. O lugar era anónimo, uma paisagem indiferente. Um lugar ermo, certamente. A noite escura cavava a desorientação. À noite somava-se um céu carregado de nuvens que ocultava as estrelas, fermentando uma sensação de abandono. Para onde olhasse, o céu intensamente negro reforçava a certeza do lugar incerto. Até ao horizonte não conseguia observar nada que desse uma pista onde se encontrava. Caiu no sono – ou num sonho por dentro do sonho, essa matéria intangível que às vezes rivaliza com as obras mais surrealistas. Voltou a acordar, agora sob um sol intenso. Dentro de uma nau, involuntariamente nauta, sozinho numa embarcação que seria fantasma se não fosse seu inquilino. À volta, só mar. Um mar fundido com o céu quando emagrecia no fio do horizonte. A nau avançava de acordo com os humores do vento. Podia ser que o vento fosse favorável e que levasse a nau para um lugar que deixasse de ser incerto. Passaram três dias e duas noites e continuava a ser o único passageiro da embarcação. Não se podia dizer que fosse seu tripulante: a ponte de onde se comanda a nau estava fechada com um cadeado que não conseguiu destruir. À terceira noite veio um sonho que o trouxe para uma selva. Sob os maus auspícios de um calor tropical, por onde quer que irrompesse só encontrava mato e arvoredo, às vezes quase inexpugnável. Agora não estava sozinho. A fauna abundante vigiava-o, entre mosquitos e animais de grande porte. A certa altura, não podia avançar. À sua frente, um precipício albergava uma queda de água temível. Hesitou, entre voltar para trás (seria perder tempo) e saltar no vazio (a morte muito provável). Cansado, ajeitou umas folhas carnudas e adormeceu. Os lugares só são incertos até lhe descobrirmos o avesso.

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