6.8.24

Relatório (short stories #452)

The Smile, “Read the Room”, in https://www.youtube.com/watch?v=n6vh4rfgdcE

Falassem as rosas para podermos ser heróis do tempo ébrio. Diríamos às planícies para não se intimidarem com o sol cravado nas flores encardidas, que a planície já se habituou a Verões febris. Às vezes detemo-nos, com a surpresa a estalar dentro da boca, e perguntamos como é possível haver arbustos e plantas e umas esparsas árvores num lugar tão inóspito, com o solo enrugado pelas fendas que se cavam entre a terra à medida da demorada ausência da chuva. Há corpos que desenvolvem insólitos modos de resistência. É como se o código genético soubesse ler as instruções do lugar e aprendesse a ser contexto. Sabendo que se omitir o dever de adaptação, o destino esperado é a extinção. Os organismos vivos amaciam a aridez. Por muito que estejam cobertos de poeira (a tarde costuma levantar um vento hostil que subleva o chão), estas plantas e arbustos travam a colonização da aridez. Como se fossem fadados para o milagre, conseguem viver tempo a fio sem ingerirem água, a não ser aquela que os seus finos tentáculos subterrâneos conseguem extrair das funduras, onde assomam, tímidos, uns lampejos de água freática. Nós, por dentro da zona de conforto urbana e habituados aos prazeres burgueses, estamos destreinados para as contrariedades. Talvez uma temporada num lugar ermo e inóspito, um retiro hermenêutico para conhecer as rugas da alma e apreciar a resistência de organismos que parecem viver no limiar do precipício, servisse de lição para deixarmos de ser personagens de porcelana, sempre à espera da menor contrariedade para nos socorrermos de gurus da alma que, dizem, oferecem curas férulas para as nossas incapacidades. Encomendássemos os sobressaltos à rotina e não seríamos peças de filigrana, tão frágeis que se estilhaçam à menor contrariedade. A inspeção interior é a sementeira de muitos relatórios. 

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