20.8.24

E tu, compravas um carro chinês?

The Sugarcubes, “Motorcrash”, in https://www.youtube.com/watch?v=vz9WNOkVTWo

Os lugares-comuns, averbados pela voz popular, transitam por avenidas denunciadas pelos que patrulham o pensamento correto. A certa altura, ficou popularizado o mito urbano (que, em rigor, não passa de uma mentira passada de boca em boca) sobre as “lojas dos chineses”. Estas lojas receberiam alcavalas do Estado, como se ao Estado competisse dar condições vantajosas às lojas chinesas em detrimento da concorrência nacional (e de outros países). Na voz do povo pressentia-se um racismo mal disfarçado em relação aos “chineses”. (E pressentia-se uma grosseira ignorância.) Se fosse feita uma investigação, aposto que não demorava até se perceber que muitos dos que vocalizavam tamanho racismo eram assíduos clientes das “lojas dos chineses” (mas a incoerência não é um pecado como muitos juízes públicos apreciam denunciar).

Quando apareceram automóveis que se emanciparam de combustíveis fósseis, as marcas chinesas começaram a ganhar mercado. Hoje, se não fosse pelas restrições aprovadas pela União Europeia, que pretendem compensar as vantagens das marcas chinesas, estes são os automóveis mais apetecíveis na comparação dos preços. Nas ruas, circulam cada vez mais automóveis elétricos chineses. Já estamos habituados.

Só uma investigação sociológica aturada permitiria saber se os mesmos que popularizaram o mito das “lojas dos chineses”, transmitindo um racismo latente contra os chineses, estão em condições de comprar automóveis fabricados na China. Deve haver alguma sobreposição: não se atire apenas para a falta de conhecimentos (ou para a ignorância pura) o labéu do racismo forjado contra os chineses, que testemunhei alguns episódios de gente aparentemente bem documentada a reproduzir a mesma falsidade sobre as “lojas dos chineses”. Alguns desses bem-informados são pessoas de posses e candidatos óbvios à compra de carros vindos da China. Repita-se: a incoerência não é um pecado mortal (digo: não é, sequer, um pecado).

A pergunta em levitação é a seguinte: e tu, compravas um automóvel fabricado na China? A pergunta tem destinatário geral, não é apenas destinada àqueles que caíram na armadilha do seu próprio logro, quando dantes se insurgiam contra as “lojas dos chineses” e hoje aparecem nas listas de espera para a compra de automóveis feitos na China. Conseguimo-nos despir de preconceitos (os que os tiverem) para encomendarmos um carro elétrico feito na China? É que muitos outros se habituaram a considerar o “made in China” como cópias de fraca qualidade, a representação do barato que sai caro; mantemos esse padrão, ou alteramo-lo para figurarmos na lista de espera de automóveis chineses?

O episódio encerra duas conclusões. A primeira encontra-se com a maré imparável da globalização. Permite a países que não figuravam entre o escol dos industrializados serem referências na concorrência internacional. As oportunidades não estão vedadas aos que não conseguem singrar num determinado momento. A segunda atesta a conversão do comunismo (de um certo comunismo) às virtudes do “grande capital” (usando um expressão tão cara aos comunistas locais). 

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