19.8.24

A abrangência de ser abrangente

Portishead, “Mysterones”, in https://www.youtube.com/watch?v=CtxA_MP-9oE

De forma abrangente, quando se quer dizer que uma coisa, ou uma ideia, ou uma teoria, ou uma prática, cobre uma panóplia de coisas, ideias, teorias ou práticas, depressa se arranja o rótulo a preceito: dele(a)(s) se diz ser(em) abrangente(s). 

É um pouco como o abastardamento do fascista: hoje, quando alguém (de preferência situado às esquerdas) quer depreciar um oponente, carrega-lhe o vínculo pejorativo de fascista. Fascista tornou-se no adjetivo desqualificativo por excelência, ainda que, muitas das vezes, o “fascista” (as aspas aparecem com pleno significado) não se enquadre no que é um fascista quando a História e a Ciência Política são usadas como quadros teóricos de referência. As adulterações semânticas cristalizam-se nos usos e na fala que se socializa, condenando ao atavismo o uso rigoroso de um vocábulo. Hoje, se queres dizer mal do teu oponente político, atira-lhe com o fardo do fascista. Até pode acontecer que o “fascista” não acuse o toque, sabendo, como sabe, que não é fascista (na rigorosa aceção do termo), mas o acusador sente a interior gratificação de ter desqualificado o outro. Pelo caminho, o idioma – e, pior, certos termos de referência – abastarda-se, favorecendo o abastardamento dos seus fautores (sem, contudo, darem conta, tão olimpicamente convencidos do seu triunfo).

Hoje acontece o mesmo com o vocábulo “abrangente”. Quando alguém quer dizer que algo tem um largo espectro, que cobre uma multiplicidade de fatores, ou que se dispõe a ser explicação válida para uma plêiade de fatores, logo arrasta consigo o adjetivo “abrangente”. O dicionário não deixa mentir: abrangente é o “que abrange ou inclui; inclusivo; que se aplica a vários casos; amplo; vasto” (Dicionário Infopédia online). O uso indiscriminado de “abrangente” expõe-se à abrangência de quem não é diligente ao ponto de encontrar termos que sejam o atestado rigoroso do que pretendem explicar. São as palavras pronto-a-vestir, que perdem validade por se prestarem a explicar tudo e um par de botas. 

Aos seguidores do abrangente deixa-se um conselho: quando quiserem qualificar a “abrangência” do que pretendem explicar, digam que a coisa, a ideia, a teoria ou a prática em questão são holísticas. Até lhes dá um ar mais erudito.

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