2.8.24

A faca nas costas

Paul Weller, “Flying Fish”, in https://www.youtube.com/watch?v=srYaVR6JEAs

A faca nas costas nem sempre doi. Enquanto não for sabido que a faca se acrescentou às costas da vítima, a mesma continuará indiferente por não saber que as costas têm o acrescento da faca. É como apalpar os efeitos de uma mentira: uma mentira só passa a ser quando se revela na pessoa por ela afetado. Até lá, é uma mentira reservada ao fautor, ao seu íntimo, não revelada; não existente para efeitos públicos.

O desconhecimento da faca cravada nas costas tem um efeito analgésico. O tempo que medeia entre a ferida infligida e a dor sentida depende de alguém interpelar a vítima, advertindo para a faca nas costas. Por não termos o condão de ver através das costas, não conseguimos ver uma faca espetada nas costas. O que o olhar não vê não arroteia a dor. 

O argumento pode ser virado do avesso: se o que o olhar não vê trava os efeitos dilacerantes da dor, uma dor que exista e que não seja descoberta pelo poder inquisitivo do olhar é uma dor fingidiça. A pesarosa vítima deve convocar a vontade e aplicar um corretivo sobre a dor: se o olhar não distingue a sua causa, ela não tem razão para existir. Muitos medicamentos depressa seriam condenados a vegetar na sua inutilidade.

Quando a faca nas costas é revelada, o que deve fazer quem a carrega? A resposta espontânea é propor que a faca seja arrancada das costas. É um corpo estranho que, ao ser descoberto, ateia a dor que antes estava ausente. Mas arrancar a faca das costas não pode ser feito por amadores. O corpo podia sangrar abundantemente até se esvair no seu estertor. 

A faca nas costas deve ser removida com cuidado e por conhecedores. Tem de ser manipulada com diligência para não mexer em partes sensíveis que estejam esquartejadas pela faca ainda pendida sobre as costas. Não sendo assim, é preferível deixar a faca nas costas e fazer o tirocínio sobre a dor suportável. 

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