7.8.24

Mousse de framboesa (short stories #453)

Deftones, “Knife Party”, in https://www.youtube.com/watch?v=dVMfISO9T1Q

        As framboesas medram, ainda agarradas aos arbustos que as ligam à fonte da vida. Não sabem que fado será o seu depois de colhidas. Não sabem se vão participar do recipiente das sobras – os frutos que não correspondem às normas de calibração, os frutos negligenciados pelos apanhadores e que ficaram estragados, os frutos que foram ingeridos às escondidas por um apanhador que não conseguiu resistir aos encantos da apanha. Não sabem se vão ser framboesas extemporâneas. Se não forem engrossar o cardápio dos desperdícios, as framboesas vão parar à banca de uma vendedora de fruta na feira de um lugar ao acaso, ou às prateleiras standard de uma grande superfície comercial, depois de devidamente etiquetadas. Será o apeadeiro antes de as framboesas chegarem ao consumidor final. Que pode ser uma pessoa a comprar mantimentos para o agregado familiar, um chefe de cozinha a fazer as compras dos ingredientes necessários para compor a ementa do restaurante, ou alguém que andava a passear pela grande superfície comercial e, amante de framboesas, prometeu-se uma iguaria entre duas refeições. As framboesas não sabem se vão ser ingeridas ao natural, misturadas com chantilly, servir de ornamento a um cocktail, ou de decoração de uma iguaria no restaurante que transforma a matéria-prima em gastronomia gourmet, ou processadas num puré que ajuda a confecionar uma sobremesa: mousse de framboesa, por exemplo. A ignorância das framboesas não previne as alterações de estatuto. Terminam o ciclo de vida no estômago de alguém. Esta constatação devia chegar para as framboesas não se inquietarem com o seu estatuto vindouro. Sejam ingeridas ao natural, apareçam como decoração numa bebida ou num iguaria agridoce, ou acabem processadas como ingrediente de uma sobremesa, acabam sempre da mesma maneira. A vida não é democrática. O que vem depois da morte, é. 

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