30.5.14

Provavelmente, num coffee shop

In http://www.arizonacoffee.com/wp-content/uploads/2006/12/TheBar.jpg
A cidade é tão grande e, todavia, parece um lugarejo onde se sente assaltado pela claustrofobia. É grande a cidade, com tantos recantos decerto desconhecidos, mas ele desagua sempre nos mesmos lugares. Talvez seja garantia contra a novidade, com o temor que os olhos se cegassem com o efeito telúrico da novidade. A certa altura, a idade descompõe os sentidos e a novidade é agressora. Mas o tempo começava sempre da mesma maneira. As alvoradas temporãs faziam sobressair a luz baça através do orvalho da madrugada, quando aproveitava a letargia ainda a desfazer-se em quase toda a gente que se convencia para mais uma jornada. As ruas são mais belas quando estão quase sozinhas, despejadas de outra almas. Quem disse que a solidão é opressora?
O pior era quando assomava a pergunta habitual: por onde ir, até onde ir? Quando a ousadia tinha emancipação, metia os pés por caminhos raros. Depressa aportava a ruas conhecidas, a lugares que eram visitação frequente, entrando nas mesmas livrarias, nas mesmas lojas de roupa, nos mesmos cafés, olhando de soslaio para os mesmo monumentos. Não era a rotineira peregrinação que o apoquentava; era saber do lugar-comum que certificava que os hábitos e sua repetição são doença. Queria arremeter contra a ditadura dos juízos, dos que se ajuramentam sábios que se julgam enciclopédicas fontes de saber do saber dos outros. Queria romper com o marasmo das autoajudas, dos compêndios milagrosos que esboçam as receitas para todas as maleitas, contra o saber catedrático das regras muito matemáticas sobre a mais não matemática matéria que é o comportamento dos homens.
As manhãs monótonas não eram o desenho de estilhaços. Eram o princípio do pensamento que flanava com o corpo que mecanicamente se arrastava pelas ruas da cidade. Delimitando as fronteiras do território habitável, como se as ruas e os recantos que eram tão estranhos como qualquer desconhecida cidade fossem a metáfora do tóxico. Não sentia saudades do desconhecido. Não reprimia sequer a pulsão da aventura, que o poderia trazer às fímbrias das ruas singulares que dantes nunca foram visitadas. Era como tinha de ser. O desassossego com a antinomia do que era, não tinha acolhimento.
À noite, repousava no sono com desembaraço. Já não era, como dantes, amotinado dentro das fronteiras de si mesmo. Que maior prova de vida podia ter entre as mãos?

29.5.14

Make a wish

In http://www.casadocarnaval.pt/upload/product/222-lamparina-de-aladino_1344878975.jpg
Emagreceu as aflições, porque um dia apareceu um Aladino. Já tinha ouvido lendas sobre gente afortunada a quem tinha havido por aparição um Aladino. E de como se transformaram doravante, com as aflições de partida e o tempo abençoado pela ventura. Continuava na posição da desconfiada metódica, pois aprendera que as lendas eram isso mesmo, lendas. A menos que fosse testemunha direta de uma delas, até lá confiava não acreditar em mitos. Não contavam com ela para alimentar o sargaço de efabulações mitológicas.
Naquela dia sentiu-se na necessidade de bater na boca. Era como se o Aladino por diante cuidasse de a ela subir uma espontânea contrição. A seguir, o Aladino perguntou-lhe pelos desejos que seriam correspondidos pela graça que lhe fora outorgada. Como era habitual, às perguntas respondia com interrogações complicadas que nelas se engatilhavam:
- Diz-me quem te enviou? És produto da graça divina?
- O que importa saberes quem me colocou na tua senda? Não queres antes aproveitar a minha revelação? Muitos como tu diriam oxalá à minha descida aos seus olhos.
- Não me entendas mal. Não te desdenho, nem estou a demitir a tua revelação. Aos meus pedidos já vamos de seguida. Mas rogo que satisfaças esta curiosidade.
- Só se me disseres antes o que motiva essa curiosidade – mas advirto que a minha revelação tem prazo de validade, e que o prazo se esfuma nuns minutos.
- É que – sabes? – tenho de resolver os meus problemas com deus. Teimo na sua inexistência, mas é custosa esta ateia linhagem que por mim flui.
- Posso entender que o teu desejo é a resposta à dúvida metódica?
- Podemos começar por aí, se não for importunação para ti – insistiu ela, sem lhe ser dada a recordar a advertência já feita por Aladino.
- Agora é a minha vez de responder através de uma pergunta prévia: o que te faz crer que sou criação divina, ou embaixador de um deus que, por esta descida a um lugar terreno, aponta um escolhido?
- Desconfio. Nem em sonhos acredito em mitos. E tu estás na categoria dos mitos.
- Mas esta revelação não é do domínio da mitologia. Ou das lendas narradas com o azimute dos néon que emprestam luminosidade às histórias fantásticas. Nem, isso te garanto, estás por dentro de um sonho.
- Estás a sugerir que não vens encomendado por deus...
- A conclusão é tua.
- ...mas isso não me garante que deus existe, ou que não existe.
- Dou-te a resposta: deus...
De repente, o Aladino evaporou-se numa fugaz névoa. E ela ficou sem satisfazer os desejos que nem sequer conseguiu esboçar assim lhe apareceu, em pose altiva mas magnânima, o Aladino que julgava ser uma lenda. Ficou com as mãos cheias de nada. E nem a dúvida existencial, que a manda pela ladeira do ateísmo, tratou de encontrar resposta.

28.5.14

Fusão

You Can't Win, Charlie Brown, "Be My World", in http://www.youtube.com/watch?v=B0Z-0KmEwc0
Não é saber que segue quem. Não é saber quem usa a batuta, ou quem exorciza fantasmas (que já nem são sombra da memória). Não é saber se andamos em demanda do futuro. Podiam-nos garantir mil anos de existência, que o tempo de agora continuava a ser o que importa.
E o que importa? Abrimos a janela pela manhã e somos donos da maresia que se insinua. Somos donos do mar que beija a orla com a sua generosa beleza, o majestoso mar que amansa espíritos que se jugavam indomáveis. Somos donos. Do que nos apetecer. Quando nos apetecer. Sem peias. Sem lições de algures vociferadas por velhos guardadores de costumes, ou uma profusão de candeias que prometem emprestar uma lucidez altiva, como se estivéssemos carentes de um farol. O que importa são os passos que damos que são uma sinfonia, a síntese da fulgurante claridade das manhãs luminosas. O que interessa é que nem mesmo as manhã desanimadas, com nuvens carregadas de escuridão depondo o sol nascente, nos demovem de entrarmos na fusão dos mundos que foram parcelas de dois e agora se transfiguraram, em harmonia, para sê-lo um só.
O que interessa é deixarmos as lentes que o exterior em nós quis açambarcar, porque somos livres e deixamos o exterior no lugar a que pertence – o exterior. E corremos atrás do vento, às vezes parecendo dementes, porque na fusão dos nossos mundos convencionamos que detemos o vento entre os dedos. Para o moldarmos, na vez de arquitetos das formas, até que uma estátua formosa cresce desde a irradiação dos nossos dedos. Corremos atrás do vento porque sabemos que todas as horas são apontadas ao tempo que se consome sem se desgastar. Nunca é tarde, nem nunca deixará de ser cedo. Enquanto formos tutores do tempo, caminhando na areia alisada pela nortada ao entardecer, à medida que os olhos ditam o crepúsculo e comandam a deposição do sol no firmamento.
Pois o hoje a nós veio. E do amanhã, não curamos de saber. Pois do hoje não nos despojamos.

27.5.14

Roteiro para erodir a abstenção

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1BvtxKZCE1EyNOAyruSsqChOPebU-8iBKeZBO1aZNlaknJBZdJwZx9qdlUeWFYxzavil9V_LytbBAzL3v-L-DvYMUSO4Q1H7Ok6rN_oGr22J_PqQDjHGqnVm321lc7Kao1ENGgg/s1600/donkey-and-carrot.jpg
Outra eleição, outro choque coletivo (exceto para a imensa maioria que não foi votar): houve muitos que acharam o tempo bem empregue a fazer coisas diferentes, não havendo tempo para se deslocarem à respetiva mesa de voto. Uma eleição é um detalhe. Cada vez mais. Insignificante, como são os detalhes.
Desta vez chegamos a um número redondo: dois terços não votaram. Pode ser que os cadernos que ordenam os eleitores estejam errados, com mortos ainda com capacidade eleitoral a serem eleitores fantasmas e gente que emigrou e que se faz constar que não foi ganhar a vida lá fora. Mesmo descontando esses erros de seriação das almas eleitoras, há mais gente que não vota do que votantes. E ainda que os especialistas, dando cobertura aos atores dos partidos que assobiam para o alto quando lhes falam da abstenção, advirtam que foi por causa da Europa, e que poucos sabem o que é a Europa e qual a serventia do Parlamento Europeu, fica muito restolho espalhado a contaminar a paisagem.
Talvez seja tempo de parar e meditar. Para depois interrogar: o que se pode fazer para diminuir a abstenção? Temos de contar com o hedonismo dominante e com o utilitarismo que serve de mote aos comportamentos individuais. São os tempos que temos. E se alguém pretender mudar mentalidades à força, apenas com o pedagógico chicote dos valores que andam cobertos pelas sombras e que devem ser ressuscitados, que se desengane. Não vai lá dessa forma. A gravidade do assunto exige medidas radicais. Ajustadas aos tempos em que somos consumidos, sem pretender forjar aquilo em que nos transformamos noutro sujeito diferente e ideal.
É altura de considerar a tática da cenoura. Não que esteja implícito que o eleitorado não votante faça as vezes do animal que a metáfora coloca atrás da cenoura enquanto esta se move. É apenas uma metáfora, sem pretender apoucar os não votantes. O que faz falta, é distribuir prémios pelos eleitores que ainda o quiserem ser. Daqui para a frente, é deixar a imaginação assomar à superfície. Assim como assim, já se inventaram sorteios de automóveis para quem paga impostos e denuncia as faturas das compras que faz. A Europa teria uma palavra importante (pois a doença é maior quando ela se faz a votos): jantares com celebridades, viagens a lugares exóticos, automóveis de luxo (com combustível pago durante um ano), um ano sem pagar impostos, a casa penhorada ao banco que ficaria livre de encargos, os estudos pagos à descendência (até que os petizes os terminassem) – é só deixar a imaginação fluir.
Pois se o povo diz, à boca grande, que grandes males requisitam os grandes remédios, que se atalhe o problema com medidas radicais. Ou então deixem o povo entretido com a sua não percebida genética anarquista.

26.5.14

A missa nem a metade


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhAcvEOK5Vz45XTPUrzsIcyIqaAZWxkkIOerNFmwhKjIev7Xwa1-q7SFI7TOFQIEgx5hcLGsJ_P08DoZeXIvK79p57u-bEKPola7Qa4P3KGDZBL54k7TzO_P5HQrHO4-1O13rpi/s1600/gatoRato.jpeg
(Texto com conteúdo potencialmente chocante para quem nunca deixou de ver os fantasmas do fascismo e para os que mais tarde chegaram à patologia – correndo o risco de ser acusado de fascismo social, mas aí vai a prosa sem receios)
Um indivíduo mata duas mulheres e fere mais duas com gravidade. Anda foragido mais de um mês. Por fim, esgotado com a fuga, deixa-se apanhar. É levado a tribunal, para saber que fica à espera de julgamento em prisão preventiva (não lhe vá apetecer outra vez jogar ao gato e ao rato com as autoridades; e para não reincidir nesse ato de heroísmo que é maltratar mulheres). À porta do tribunal, um ajuntamento de seguidores do foragido. Quando o homem foi transportado do carro celular para o tribunal, os seus adeptos aplaudiram-no.
Moral da história: o que está a dar é o jogo do gato e do rato com a polícia. Quanto mais tempo o foragido conseguir despistar as autoridades, mais simpatia reúne junto da populaça. Mas fiquei atónito com a reação dos espontâneos que fizeram manifestação à porta do tribunal. É costume o povo juntar-se nas imediações dos tribunais quando estão para chegar criminosos do pior jaez, vociferando contra o criminoso, os polícias que o protegem da ira popular por impedirem a justiça popular, e contra os juízes que não sabem nada de justiça. Desta vez, foi tudo ao contrário. O povo prestou homenagem ao foragido. Não interessa que o homem traga um lastro de violência doméstica atrás de si (até usava pulseira eletrónica), não interessa que tenha friamente assassinado duas mulheres e que quase tenha conseguido fazer o mesmo a outras duas. O que conta a sério é o jogo da apanhada que o homem andou a jogar durante mais de um mês, ludibriando as autoridades. Foi como se o sexagenário fosse um fuzileiro disfarçado, escondendo-se das polícias que lhe deram caça. O povo que se tornou admirador do foragido ficou encantando com a imagem de um homem a valer mais do que dezenas de agentes da autoridade que partiram em sua demanda. Como é sabido, o povo congratula-se com o triunfo dos fracos perante a capitulação dos fortes. Como o enredo findou com a vitória dos fortes, o povo comoveu-se com a decadência do fraco.
O episódio também desatou em mim alguma comoção. Afinal de contas, o povo tem uma certa queda para a anarquia. Senão, as proezas do foragido não tinham sido aplaudidas. Falta saber se o povaréu também apoiou as malfeitorias cometidas sobre as mulheres; porventura é daquele estalão que considera que as mulheres estavam a pedi-las, que desafiar a honra de um homem é um ultraje que justifica o tresloucado ato do assassínio. Para este povo ilustre, a demência, com certeza temporária, é de somenos importância. O que conta é o jogo do gato e do rato, a zombaria das autoridades, a sua desautorização, a honra marialva.
Se calhar, o povo devia ser educado nas virtudes da anarquia, pois está demonstrado que os pergaminhos da democracia não lhe são convincentes.

23.5.14

Aquário


Metronomy, "I'm Aquarius", in http://m.youtube.com/watch?v=iQS4oa-dgLY

Aquário de águas translúcidas, como soe ser com a transparência que se não apregoa, antes se pratica. Aquário onde as águas se decantam de todas as impurezas. Podem os peixes todos encontrar regaço nestas águas, que elas não se inquietam. Podem as mãos que se metem nas águas prometer remoinhos, que mal elas se despojam da sua presença resgatam a quietude. Um aquário perene, mesmo quando há sobressaltos que devolvem sombras ao horizonte. 

Podem as águas ser temporárias senhoras de uma volição própria, tirando partido do desassossego; será coisa de pouca dura, pois a fortaleza interior sobrepõe-se à penumbra que desagua sobre o peito descarnado. Pois é de tendência dominante espantar demónios que intuem apoquentações. A parede do aquário é de uma força granítica, dir-se-ia ter a mesma resistência que dos materiais das barragens é predicado. 

Como aquário sem freio, há toda uma generosidade pronta a ser desembainhada. Descomprometida, unge-se por quem dela tem merecimento. Sem pagas nem retomas, ou favores por cobrar. Pois as águas que nidificam no aquário são matéria nobre, delas podiam esboçar-se estátuas imponentes, o zelo pela perfeição de que dizem não ser pergaminho humano. Uma miríade de olhos deita-se nas apetecíveis águas do aquário. Parece tão nítido, tão à mão de semear. E, todavia, num acesso final, quando as mãos investem num gesto de demanda do interior do aquário, ele desvanece-se. Talvez tudo não passe de uma alucinação, os olhos sedentos de amparo vendo o que não tem existência. 

Desconfortáveis, os desenganados erram pelas ruas da cidade. Não conseguem reprimir lágrimas que depressa se tecem em pranto. Não augura fado promissor. Do lado contrário, continua a jurar que é um aquário de águas abertas, com cais franqueado aos que motivam merecimento. Não será de admirar que ele seja tutor de quem merece medrar nas águas do aquário. Pois ele é o aquário, seu senhor e caução da sua vontade última. 

22.5.14

O verdadeiro manual da desobediência civil


Mão Morta, "Horas de Matar", in http://m.youtube.com/watch?v=mdFKmDn2bhs

Regozijem-se, ó revolucionários de velha têmpera, ó líricos entretanto convertidos à retórica radical, ó desocupados com elevada presciência baseada na repetição da história, ó pequeno exército de intelectuais arrivistas que pressagiam levantamentos populares contra a insidiosa governação que, certificam, reinstalou o fascismo em pezinhos de lã. Sacudam a poeira das vestes e abrilhantem o olhar que a esperança não tocou a finados. 

A vossa luta, afivelada em tanta verborreia sebosa, está quase a levar vencimento. Daqui, dos vossos antípodas por vos não reconhecer pergaminhos de tolerância, faço-vos um favor que não tem preço: vejam o vídeo ali em cima. Se calhar nenhum de vós, auto-proclamados lugares-tenentes do resgate da dignidade, conhece o Adolfo e os Mão Morta. É compreensível: ainda esgravatam no nostalgia dos cantautores de intervenção que fizeram as vossas pós-adolescentes delícias. Não precisam de me agradecer, que dos vossos encómios distrato. Vão ao vídeo e encantem-se com o sintético manual de desobediência civil. O Adolfo fará a diferença, pois tem audiência. Pode ser que a mensagem passe de boca em boca e uma imensa horda de descontentes reproduza a encenação do cantor. 

A certa altura, podem passar os olhos numa entrevista que o músico vai dar amanhã (no suplemento de cultura do Público). Não se intimidem quando o Adolfo reconhece o teor poético da sua linguagem. Se bem o percebo (pois que eu, ao contrário de vocês, conheço e admiro a obra do Adolfo), a mensagem não é para ser captada no seu sentido literal. Vemos no vídeo o Adolfo a disparar um revólver sobre gente bem posta e, em forma virtual, a encher de balas os mandantes que nos últimos trinta anos foram a nossa desdita. 

Mas vocês, tutores da revolta em embrião que tanto gostavam que viesse para as ruas, não se iludam: o caos é mau conselheiro. Se as armas se vulgarizassem, em comprazimento dos vossos sonhos que julgam rebeldia, nunca saberiam se amanhã seria a vossa vez de dizer adeus ao mundo. Não, não puxem os galões a uma valentia que, aposto, é soberba retórica. As balas perdidas são tremendamente injustas. E não resolvem nada, como ensina a história que alguns de vocês tanto gostam de apregoar.

21.5.14

Mau da fita


In https://c2.staticflickr.com/4/3348/4633809162_7f7177f13c_z.jpg

Quando acordava e entrava na casa de banho, a primeira coisa que fazia era espreitar o espelho. Era um narcisismo ao contrário: fazia questão de se ver feio, tão feio que metesse medo a criancinhas e velhas desamparadas. Não queria o estalão da simpatia. O mundo era mau de mais para a cortesia entre os pares da humanidade. E se meio mundo andava a enganar a outra metade, com esta, por sua vez, metendo esforços para devolver a cortesia, por que haveriam os pares da humanidade de nutrir simpatia se praticam a traição?

Dele se dizia ser raro o sorriso. O rosto carrancudo arrancava as pedras da calçada à medida que o seu passo pesado troava nas redondezas. As crianças, é um facto, mudavam de passeio aconselhadas pelos progenitores. Pois se dele se contavam histórias hediondas, proezas de que apenas se ufana quem seja sociopata, e dele se fazia constar que envergava uma voz cavernosa que destilava maldade pelos poros, ou que as lendas narravam o arsenal de pistolas e punhais que escondia debaixo da roupa escura, melhor fosse que as criancinhas se alijassem de nefasta influência.

Dele se dizia também que se divorciou da simpatia. Que professava uma boçalidade atroz. E que vivia a empreitada de amedrontar, só com o estigma da sua presença, quem com ele partilhasse uma rua da cidade. Quando precisava de ser servido (num restaurante, numa loja de roupa, num café, na sociedade recreativa local), os empregados passavam a incumbência de uns para os outros. Era como se fosse uma peste e todos tivessem medo de ser contagiados. Porque ninguém queria ser o mau da fita que viam no homem medonho.

Um dia, uma anciã foi assaltada. Dois ganapos vieram ao parque e furtivamente chegaram-se ao pé da senhora. Deram-lhe um empurrão violento e a senhora, exangue de forças mercê da vetusta idade, foi atirada ao chão. Levaram-lhe a carteira e ainda tiveram tempo de arrancar do regaço um valioso cordão de ouro. O mau da fita andava na sua demanda solitária. Ouviu os gritos aflitivos da anciã. Cortou caminho entre os arbustos e interceptou os gatunos. Mal o viram, assustaram-se. Mas, ato contínuo, terão pensado na vantagem numérica (dois contra um; e o mau da fita já entrara na meia idade). Não podiam ter tomado pior decisão. Apanharam tamanha tareia que só saíram do hospital dez dias depois.

O mau da fita já não (o) era. Depressa entronizado herói, ganhou o respeito de quem o temia. O homem nunca mais teve um sono sossegado.

20.5.14

Luz do norte


In http://globoesporte.globo.com/platb/files/1018/2011/01/aurora_boreal_1.jpg

Era como se uma aurora boreal pudesse desaguar nestas latitudes. Como se os nevões nórdicos pudessem fazer uma temporada, uma breve temporada, por quase mediterrâneas paisagens. Às vezes, a luz clara, tão fria que se tinge de uma claridade singular, precisa de irromper entre as nuvens densas que se acastelam diante dos olhos. 

Desenganem-se os cultores da rigidez do estio, os que desagasalham com prazer quando os corpos se queixam das tórridas temperaturas: o estio é um estorvo. Falaz, como se fosse um demónio a insinuar-se com mansas falas, a quentura é um farsante que propagandeia o oposto do que em nós deixa. Não nos iludamos: somos sorvidos por uma luz amarelecida que distorce a lucidez e embacia o olhar e, de repente, quase acreditamos ser touaregues com ímpar destreza para lidar com a aridez do deserto. Mas não somos. Teremos tez queimada, própria dos latinos povos; o sangue também é quente, em socorro das mesmas influências, quando elas triunfam nos ventos do Saara que entram na península, imparáveis. O nosso fado não é olhar com nostalgia para além dos algarvios mares, como os antepassados foram peritos na saga dos descobrimentos. 

Os tempos mudam. E mudam as convenções, assim como os pleitos de que somos peões, já não generais mandantes. Os ventos que agora contam são soprados desde as distantes terras árticas. São ventos frios, que revigoram as carnes. E bem precisadas estão, agora que deixamos de ser generais e engordamos a larga fileira dos peões. Precisadas as carnes de um módico de resistência, se não perecem à menor contrariedade, tantos os sacrifícios que vieram a contragosto. As auroras boreais importadas das nórdicas paisagens seriam o mote para a necessária introspeção. O que queremos ser doravante? Um arremedo das gestas gloriosas de tempos de antanho, mesmo que os tempos de agora sejam a antítese dos de então? Uma alucinação coletiva, de mão estendida em pedinte maneira, eternamente mantidos pelos que do norte emanam um feixe de riqueza?

Sejamos, pois, da sua têmpera. Façamos de toda a luz clara o regimento das forças hoje ausentes. E tiremos a bissetriz à coreografia de cores dedilhada na combustão da aurora boreal. Nem que sejamos negação do aquecimento global e a nossa geografia perfilhe os elementos nórdicos.

19.5.14

Lobo solitário

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhvRNbFV1IUD2Q1wncHZkPF2XEGLX5eXKW2Y2_8HUkk61ogKdvebmRgNS7I2imKbsQyhEsVmZ1m-VtIjPs7jlq6Okl2xzmxIwTm7uM_3PDmgZmH56ED5FddlxxcDwDHXl6pzfDL/s1600/lobo-5739.jpg
O lobo voltou a ser livre. Esteve doente. Salvaram-no, os veterinários que andam pela estepe. Para seu bem, esteve algum tempo em cativeiro. Até ficarem as feridas saradas e pronto para ser devolvido à liberdade. Agora o lobo é a sua solidão. Como sempre gostou, nómada e misantropo. Vagueia pela estepe, entregue à sua solidão. De cada vez que pressente a presença de outro animal, esconde-se numa cova (a menos que seja uma presa, que a fome exige mantimentos). Não se assusta com a solidão. Desde que se recorda de ser existência, só lembra a solidão. Talvez tivesse tido irmãos da ninhada em que nasceu, mas não se recorda. Ao menos, quando vier a morte, a solidão não será temida. Habituou-se a ser um lobo solitário. A viver imerso nessa condição. Morrer assim será a condição natural.
A troika que nos salvou da penúria foi-se embora no sábado. Foi dia de festejos (versão do governo) ou de denúncia de um embuste, com ressentimento à mistura (opção das oposições). Entre os que celebraram com champanhe, houve quem dissesse que estamos de novo por nossa conta. O mito do Portugal orgulhosamente só nunca esteve em hibernação. Regressam os pergaminhos de uma gesta que foi gloriosa no tempo pretérito, mas que agora vive esquizofrénica na pequenez a que se viu acantonada. Convençam-se as gentes que somos outra vez o lobo solitário – como se, na voracidade do mundo moderno, houvesse destes lobos solitários.
Mas o retrato é diferente. Nenhum lobo consegue vingar nesta estepe se teimar na toleima da solidão. Todos são presas e predadores. Se o lobo acreditar que pode voltar apenas a ser predador é pueril, uma ignorância do andamento dos tempos. Pode amanhecer um dia cercado por um predador mais forte, sem dar conta que num pequeno lapso de tempo pode passar de predador a presa. Caberá ao lobo solitário suplicar pela comiseração do predador. Que será seu salvador, em vez de ser seu algoz.
Talvez sejamos contumazes na aprendizagem. E ingratos. Quando o lobo solitário estiver com o mastim quase a morder no cachaço, e antes que a previsível morte tenha seu palco, substituída, espera-se, pela comiseração do predador, seremos ladário do arrependimento. Até que nos desembaracemos outra vez de quem nos ajudou a redimir. E, lambidas as feridas que se transformaram em cicatrizes, a soberba suba à juba do lobo que se considera, ufano e insano, solitário e soberano da sua vontade.

16.5.14

Avenida da clandestinidade

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghkBujPXyDAnu0I7tWqpKn8JTiLTeO88XnnZeCX9gTvCcmIghtUGbmCbH7QbfQKIuBrJwD0U-Dla6QtTzaxSW7uhJUeaX7j2Wzc3_TJF-XMln_fyTMngNYn4ALF8O_1gygqiAI/s320/se+esconder.jpg
O ruído de um avião. Ensurdecedor. Os olhos demandam o horizonte, mas não está lá nenhum avião. Pela noite, quando as sombras se entretecem, vultos esquivam-se entre as portadas da penumbra. Mas a rua está deserta, tal o adiantado da hora e o refúgio a que as pessoas se abraçaram. Alguém prometia um livro encantador, mas o livro está cheio de páginas vazias. O corpo anda sobressaltado por perseguições que são o fadário de uma alucinação. Pode ser que os sonhos se tenham transfigurado em carne viva. Pode ser que escapem ao inteligível. Pode ser, apenas, a loucura. A ferrar bem fundo na carne fraca, gracejando contra os anjos que asseguram proteção divina (por interposta pessoa).
O ruído continua ensurdecedor. Às vezes é música, outras vezes um berbequim de um vizinho, outras vezes o mar que se despedaça nas rochas alisadas. Mas nada disto existe em redor. E os vultos continuam a insinuar-se na noite furtiva, mas o lugar é deserto e a noite foi tomada, de uma ponta à outra, pelo sono. Há livros que se dizem deslumbrantes, mas depende de quem os lê e da sua particular lente. Os fantasmas são fantasmas, matéria não fundente, um arremedo de fantasia de quem se desprende do tempo que há.
Pode ser que nos interstícios da claridade se percebam avenidas que não são nítidas aos olhos atentos. Dimensões particulares, um tempo por dentro do tempo, alucinantemente voraz no consumo das gentes sem que elas notem na voracidade do tempo. Não dão conta que passeiam por avenidas clandestinas, acendidas pelas vitualhas despojadas pelos diabos que partiram para o inferno. Dizem que devemos ter cuidado com essas avenidas clandestinas, que estão armadilhadas, que são armadilhas letais. Dizem, sem o saber da experiência, que recusar quando alguém nos convidar a transitar nas avenidas clandestinas. Para não sermos sacrificados pelos sacerdotes implacáveis que forem tutores da clandestinidade.
Um dia, alguém perguntou a uma dessas almas caridosas se tinha provas das avenidas clandestinas. Em tendo provas, se eram danosas para a lucidez dos homens. Atrapalhada, a alma bondosa hipotecou a reputação ao ensaiar uma resposta que era uma não resposta, cheia de atalhos que ocultavam o fio condutor do raciocínio. Até hoje, não há notícia das avenidas clandestinas. Os que as continuam a fantasiar juram a pés juntos que não são avenidas proscritas, lugares imundos que não são recomendáveis para a visita de almas venturosas. E há até quem ajuramente que as avenidas clandestinas, mesmo em as não havendo, são lugares melhores para o poiso humano do que os lugares que conhecemos.

15.5.14

Uníssono

Nine Inch Nails, "We're in This Together", in https://www.youtube.com/watch?v=P9BfvPjsXXw
Juntos é que fazemos sentido. Juntos é que somos fautores da grandeza maior. E se é juntos que contamos, por junto somos a soma das parcelas que, isoladas, são decepadas partes de um conjunto que por fim se achou. E como juntos somos, uma identidade singular unge-se por sobre nós, por em nós ela se achar esteio.
Somos fusão incondicional que não esbulha responsabilidades. Um furacão indomável que sobe às mais altas ameias da fortaleza que é nossa residência. Duas vozes que se fundem num uníssono, abraçando as gratificações e as importunações que vêm do tempo, aleatórias. Vacina contra as malfeitorias que adejam nas dobras do tempo. Partes contínuas um do outro, como se houvesse arte de nos proclamarmos extensão um do outro caso não fossemos já um e só. Cais desempoeirado onde apenas deixamos aportar os navios que nos apetece. Olhos entrecruzados que perfilham sabores interiores. Vultos discretos meneando entre as infindáveis ondas furiosas bolçadas pelo mar varrido ao correr da tempestade, domando-os – mar e tempestade. Poros indistinguíveis, astutos na osmose magistral que é lição exterior.
Em sendo tudo isto, e o mais que as palavras não curam de resgatar aos sentidos, somos o que somos e não queremos senão resguardar dentro de nós. Acautelamos a noite, remetidos ao agasalho onde adestramos o outro dia que virá depois do sono. Acautelamos a empreitada de que somos mentores, tirando os freios às alcáçovas onde se aprisionam os sentidos, tornando-a mais perfeita (ó ambição maior!). E aprendemos com a descomprometida fruição dos sentidos, sendo ao mesmo tempo seus tutores. Ao mais que à nossa volta gravita, gritamos surda indiferença. 
Juntos, não interessa se é intempérie ou se é o tempo propício que nos acolhe. Juntos, numa conjunção irrepetível. Pois se é juntos que contamos, em dobro valemos trinta mil vezes mais do que a soma das parcelas que somos. Ou que deixamos de ser, na irrefreável volição de sermos simbiose. Os pés caminham juntos, compassados, em uníssono movimento. Pois somos uníssono. Por todos os lados, em todo o tempo, sem medo do que de outro modo seria fonte de temor. Com a incondicionalidade da vontade que entronizamos.

14.5.14

Mãos que são mapas

In http://www.thedailyscrub.com/cms/wp-content/uploads/2014/04/Hands-2.jpg
As mãos decantam o sol furioso. Ensaiam a teia por onde a luz deixava de arder. O corpo, errando no deserto, vagueia pelas paisagens perdidas. Lunares. Não havia equinócios ou bússolas que tivessem valimento. Só as mãos e o seu instinto.
Ao entardecer, já o corpo transido, a cabeça repousando entre os joelhos abertos pôs as mãos ao alcance de um olhar meticuloso. Dir-se-ia prostrado: a jornada fora longa, extenuante; a certa altura, era como se sentisse que andava em círculos, tal a semelhança das paisagens. Mas as mãos desmentiam o mau presságio. As mãos que envelheciam ditavam a sua sabedoria. Prostrado para não ser cambaleante, a cabeça ainda repousada entre os joelhos em contemplação das mãos. Tinham sido elas a rastrear o caminho, a encontrar vestígios entre a terra e as pedras que emprestavam à paisagem uma forma lúgubre. Dantes, as mãos tinham sido mestras de tantas obras. Mãos meirinhas da bondade, mãos artesãs que aplacam os reveses que troam sem pesar. Mãos enrugadas, mapa de onde saem as constelações inspiradas que derrotam as malsãs intromissões.
Sabia que estava nas suas próprias mãos. Deposto nelas, era como um navio sulcando águas mansas, em pleno vapor, sem sobressaltos. Pois se as mãos tinham dissolvido todo o sal que, incrustado, seria corrosivo. Se as mãos passam no dorso das contrariedades e lhes apetece dedilhar as páginas que vêm com os dias restantes. E se às mãos assiste a claridade maior, elas que se sobrepõem a todo o corpo maior que, ora sus!, se faz parte menor diante da eloquência das mãos. Apertam-se as mãos, já não cruas, depostas no suor que é transfiguração dos corpos que se fundem. Delas irradiam as forças que não são exangues. A elas pertencem os rudimentos que apalavram o porvir apetecido. As mãos enrugadas são um mapa. De onde se aprendem as sinuosas curvas pretéritas. E onde se insinuam as cores dos caminhos que se desembaciam no lustro do nevoeiro que enfeitiça as alvoradas. As mãos são prestigiosas entidades que fundem os atritos da maré enfurecida. Elas compõem a prestidigitação em que anoitece o sono. Ao cabo do sono, é como se as mãos se tivessem alisado, num feitiço de que não há serventia procurar satisfação.
As mãos estão prontas para outro dia. Para o amanhar com a fronte dedicada a amparar o suor que há de ser vertido. Porque amanhã é outro dia.

13.5.14

Sempre em pé – ou quando a lascívia invade uma campanha eleitoral

In http://cdn.controlinveste.pt/storage/DN/2014/big/ng3228665.jpg?type=big&pos=0
(Enapá 2000, "Nunca", in https://www.youtube.com/watch?v=v9JM8mORkcA)
De pé”, em letras magistrais, sobre fundo vermelho vivo. Só ao perto é que se percebe que a adornar o pregão eleitoral da extrema-esquerda caviar está o anexim “As pessoas não são dívida”. Esqueçamos esta verdade la palissiana sem, porém, deixar de recordar que a dívida aproveita às pessoas que beneficiam das regalias adquiridas que os impostos não chegam para pagar. Não é a primeira vez que a campanha eleitoral vem atrelada a insinuações de cariz sexual. Mas desta vez o “De pé”, em letras garrafais sob fundo vermelho vivo, chama a atenção até do mais desatento.
O que fica de pé é que não se percebe bem, a não ser que os camaradas caviar estejam a recordar a máxima de um ícone da democracia, Che Guevara, de que se dizia ter dito que preferia morrer de pé a ter de viver ajoelhado (admite-se que se fosse ele, como foi o caso, a ajoelhar os adversários, a alocução já vinha eivada da maior justiça). Talvez seja mais típico de mentes conspurcadas ver no “De pé” uma conotação que derrama a luta partidária. O “De pé” remete para a exuberante criatividade dos feitores do marketing eleitoral da extrema-esquerda caviar, sempre disponíveis a fazer a diferença da monotonia dos pregões inanes dos partidos que dominam o sistema.
Mas o pregão faz-nos perguntar: o que fica de pé? O másculo órgão não será, pois a cabeça de lista não é lúbrica. Se ao(à) leitor(a) ocorrer a mesma resposta luxuriante que a pergunta deixa insinuar, outra perplexidade vem a eito. Pois se a extrema-esquerda caviar se notabiliza pela discriminação positiva que combate a desigualdade de género, ao ponto de ter escolhido uma liderança bicéfala que respeita a paridade entre sexos, como podem escolher um pregão que remete para a virilidade masculina? Onde fica a excitação feminina, já que elas (justamente) têm o mesmo direito ao prazer carnal? O pregão está mal feito. Não são apenas eles que têm direito em inturgescer. Devia aparecer no cartaz, com o mesmo destaque, um axioma alusivo à volúpia feminina. Ao (à) leitor(a) cabe o exercício imaginativo de pensar no pregão. Mais a mais, se a extrema-esquerda caviar converge com aqueles que usam de uma metáfora grotesca para retratar os sacrifícios que sofremos por causa da troika, aludindo à sodomia de que somos vítimas involuntárias, talvez se perceba, afinal, a mensagem subliminar do pregão. Assim como assim, ali residem os ativistas LGBT.
(Declaração de interesses: nada contra a fação LGBT; nem sequer alinhei pelo diapasão homofóbico dos russos, tão incomodados por uma mulher de barbas que venceu um concurso de música ligeira.) 
Os criativos do marketing político da extrema-esquerda caviar decaíram numa lacuna, todavia: podiam ter pedido de empréstimo, para coroar o pregão, a música que está ali em cima. Que era mesmo a preceito.

12.5.14

O sentido esgotado das coisas

Slint, "Washer", in http://www.youtube.com/watch?v=KHvXwX6TNfY
Já era alvorada. Depois de uma noite sem sono. O homem não conseguira convocar o sono. Não saíam da memória as palavras secas do médico, na noite anterior, quando fora chamado ao hospital. Para lhe dizerem que a consorte tinha partido. Para lhe dizerem, com tamanha desvergonha, que tinha sido erro médico – que acontece.
Já era alvorada e parecia um pesadelo. Revivia aqueles instantes como se estivesse a vivê-los por dentro de um pesadelo. E, contudo, se o sono não viera, era sinal de que pesadelo não era. Como tinha sido possível? Era uma pergunta que não soube, não conseguiu, fazer enquanto pernoitou no hospital. Esteve para ali umas horas, ao abandono, depois do médico bolçar a grotesca insensibilidade. Atónito, com a cabeça mergulhada sobre as mãos, como se estivesse imerso num pesadelo de que esperava acordar em sobressalto e suor. Como tinha sido possível furtarem o farol da existência sem pré-aviso, sem piedade no anúncio da partida, sem atenção à dor que só depois da perplexidade começou a doer?
A manhã perdera o sentido. O pequeno-almoço improvisado também – era como se os alimentos entrassem mecanicamente, sem sabor e com finalidade nenhuma. Vítima do furto maior, era a vida que desapetecia. Estava inerte, deitado sobre a cama, olhando para o teto – como se no teto houvesse respostas às tantas interrogações que o assaltavam. Mas já não importavam as respostas. Nem as perguntas. Ou nada, sequer nada. Levantou-se, nu como estava. Não deu conta que uma nuvem de demência passou sobre a sua cabeça e derramou nela a precipitação. Contaminado pela demência, pegou no revólver que o avó, garboso general do exército, deixara em herança – e ele que nunca dera importância às armas, achou por fim uma serventia.
Desceu a escadaria do prédio, nu como estava, envergando a arma na mão. Subiu a avenida empunhado a pistola na horizontal do seu rosto, ameaçando disparar contra quem passava por ele. As pessoas fugiam em pânico, gritavam alvoroçadas com temor de serem alvejadas. O homem, possuído por uma cegueira momentânea, não discernia quem eram as pessoas que passavam. Não percebia que intimidava as gentes. Nunca teve intenção de atingir quem quer que fosse. Apesar de, na sua momentânea demência, haver demónios que eram uma pulsão assassina e que lhe sussurravam ao ouvido: “dispara, vinga-te dos que furtaram razão de ser. São tão inocentes como tu foste, como foi a tua consorte. Vá, dispara. Semeia a morte. Sem contemplações. É a tua vez de ser algoz. Pois ontem calhou-te em desdita o que hoje deves devolver em dobro.
E enquanto estas palavras o invadiam, sentiu o troar de uma pistola. Disparada contra si. Já não teve tempo para mais nada. Ao menos não sentiria a solidão nem o desespero da existência esgotada e do esgotado sentido das coisas.

9.5.14

Declaração de dependência

In http://ipersona.com.br/dados/artigos/imagens/DependenciaQuimica.jpg
Descomprometido. Sem lugar a hesitações. Cego. Mas não mudo, que as palavras arregimentavam-nas para declamar o vício que não era doentio. Podia parecer que mergulharam numa consumição acrítica, de que não davam conta. Podia parecer cegueira, daquela que se arrasta pelos meandros da lucidez ausente. Podia parecer que tudo o resto era desestimado, que clandestino era o mundo lá fora. Que só contavam os castelos privativos que os albergavam – os castelos edificados na penumbra da imaginação perfilhada. Podia parecer que estavam empenhados, no que ao penhor a ideia diz respeito. Tudo isso seria a forma exterior de ver as coisas, mercê dos olhos também exteriores que, por exteriores serem, não eram caução fiel.
Era apenas uma descomprometida dependência, recíproca, consentida, sem as lacerações dos punhais que, existissem, eram entorse da vontade. Era dependência sem hesitações. Cega, mas de uma cegueira sadia, a que se esteia na confiança ilimitada. Era como se tudo estivesse impecavelmente arrumado nos seus lugares, a perfeição a roçar o espaço, como se houvesse préstimo para a perfeição. Não que isso interessasse. Porventura era um espelho emagrecido aos olhos exteriores, incapazes de reter os poros incandescentes por onde viajava o amplexo de sentimentos singulares. As promessas não eram vãs; tornavam o futuro num tempo tangível. Chegavam dois olhares que se insinuavam um no outro; eram mais falantes do que palavras mil que fossem entoadas.
Parecia que nasceram gémeas almas. Nos pressentimentos, nos silêncios, nas importunações – que nem a perfeição avalizada conseguia derrotar. Mas isso era a perfeição que campeava: ao tempo radioso seguia-se a luz tomada pela penumbra das nuvens, mas não havia em lado algum nutrientes de melancolia. Porque havia abraços espontâneos, matéria corpórea em doce irradiação, poros suados que confluíam em simbiose, os olhares que eram prolixos em palavras apenas intuídas.
E havia sempre um dia que vinha depois: o dia onde tudo crescia, onde tudo se apresentava para renovação, com o gotejar das lágrimas mumificadas.

8.5.14

A “saída limpa” e outras minudências higiénicas

In http://cdn12.grohe.com/~mi/96/206/rainshower-system-sistema-de-duche.jpg
Andámos enamorados da troika (versão dos que desconfiam da reincidente prodigalidade dos governos da pátria) – ou andámos aferrolhados a ela (versão dos críticos da intervenção externa) – durante três anos. Terminado o enlevo, era preciso saber como sepultá-lo. Ou ficamos por nossa conta, sem mais ajudas de consortes de ocasião, ou terminamos o enlevo mas pedimos tutela, à cautela, não vamos cair nos arrufos de quem é nosso credor. À primeira saída do namoro chamou-se “saída limpa”. Presume-se que a segunda hipótese era a “saída suja”.
Como somos asseadinhos, apesar dos do centro e norte da Europa nos chamarem “pigs”, quisemos fazer gala dos pergaminhos de asseio. Era impensável terminar o namoro com os credores e meter os pés a um caminho sujo. Não era digno da linhagem. E apesar do desporto que se entronizou como “desporto-rei” ser uma escola de comportamentos para a imensa maioria que assim o aceita, vulgarizando métodos pouco claros para recolher louros, as autoridades quiseram dar um exemplo de lisura, afastaram a imundície do panorama. Pois se “pigs” não somos, não gostamos de patinhar na lama nem aceitamos as latrinas onde os outros jogam baixo.
No tocar a finados do namoro com os credores, era preciso saber como fazer as exéquias do namoro. Daqui sobressaem duas formas de narrar o acontecido: ou foram os credores que mandaram dizer que só aceitavam a saída limpa, pois não pactuam com falta de higiene que podia comprometer a transparência que deve reger estes negócios de Estados e organizações internacionais; ou foram as autoridades pátrias que, porventura motivadas pelas eleições em dois anos seguidos, mandaram embora o consorte só depois de todos terem tomado um banho retemperador. Não há ressentimentos, o banho foi retemperador. De hoje para amanhã, se voltarmos a precisar da rede de segurança de quem andou connosco ao colo durante três anos, ficam as memórias do banho retemperador que nos deixou amigos para sempre.
É preferível a higiene à dúvida da sujidade, que atira nódoas para o horizonte. Fazendo jus ao saber popular (contradictio in terminis, porém), pelo menos o saber popular de que somos cativos (o nativo), somos mais dados à higiene do que os povos que foram nossos credores. A saída limpa era o fado.

7.5.14

A possibilidade do impossível

Micah P. Hinson, "The Possibilities", in https://www.youtube.com/watch?v=HRRnosHzdCw
O que somos, se não a têmpera de quem se não amedronta diante dos sobressaltos? O que somos, se não os pergaminhos da ambição, pois sem decantarmos os desafios ficamos reféns de um torpor incendiário?
Os cânones ensinam o possível. Não se fala do impossível. Deixa-se o impossível aos sonhadores, aos lunáticos, aos poetas que parecem viver num mundo hermético, aos vendedores de alucinações. Não – diz-se com redobrada ênfase – o impossível não pertence ao leque das possibilidades, deve ser banido do léxico das empreitadas. Ou corremos o risco de fazer par com a fileira de desprendidos que se alimentam do vazio – essa gente não recomendável. E não queremos, pois não, ó sacerdotes da normalidade? Não vão os azimutes oníricos despertar assombrações que se acreditavam hibernadas e que, ao verem outra alvorada, podem tudo inquietar com seu malsão feitio. A rotina não se compraz com espíritos livres, com a rebeldia de quem desafia a impossibilidade, pois não, ó sacerdotes da normalidade?
Todavia, somos matéria empenhada aos sonhos. Por mais que os tutores da possibilidade nos guiem pelo tamanho escasso por nos deixam mover, somos fautores dos sonhos que nos comandam, dos sonhos de que somos arquitetos maiores. E enquanto os sonhos se encastelarem, diremos não à ditadura da possibilidade que encerra o terreno das impossibilidades numa masmorra escura. Pudera: os tutores da normalidade, tementes do desarranjo do simples arremessar da impossibilidade, são próceres dos limites por eles entronizados como matéria aceitável. Vigilantes absolutos, implacáveis para quem ousar a dissidência.
Enquanto houver sonhos por compor; enquanto houver livre arbítrio que não empalidece diante da tirania dos próceres das possibilidades; enquanto formos gente de matéria viva e curadores do pensamento livre; enquanto não nos deixarmos empenhar pela intransigência da resignação: seremos engenheiros das impossibilidades que nos apetecer, nem que elas transitem no limiar da transgressão. As proezas são tradução de impossibilidades que o foram em devido tempo, mas que a destreza dos afoitos devolveu a diferente território, agora o da possibilidade.
E manteremos a centelha viva, a que nos acende o vasto mar das impossibilidades. Que só o são até que nos metemos ao caminho para que o deixem de ser. Pois do nosso engenho tudo depende.