31.1.18

Campanário


Orelha Negra, "Throwback", in https://www.youtube.com/watch?v=WB_Qp1UNCww
Uma demanda de perspetiva – ou a renovação do prisma usado para decantar as interrogações que se colocavam. Precisava de mudar o olhar das coisas. A encruzilhada não oferecia lídimos caminhos de probabilidades aceitáveis. O pensamento estava cercado pelos becos sem saída em que se enovelara. Era como se sentisse que precisava de uma calibração por fora e por dentro, meter o conta-quilómetros a zero para desenhar tudo a partir de uma folha em branco.
Nestas alvíssaras de uma bússola noviça, tinha de compor a partitura das interrogações num lugar longínquo, na aparente contrafação da solidão, num lugar de preferência empolado: tudo o que viesse ao olhar era contributo útil; podia ser retido, ou não – mas mesmo que não fosse retido era critério a não desprezar, a negação excluía hipóteses da nova cartografia do ser. A procura de um solfejo de presciência, entre a tanta desorientação fermentada no opróbrio dos contratempos, obrigava ao lugar altaneiro.
Encontrou uma aldeia remota, quase sem habitantes. A praça principal, onde saltava à vista o pelourinho ancestral em bom estado tinha uma igreja centrípeta (fazendo supor que houvera reabilitação recente, que a pedra granítica não é imune às cicatrizes de quem se expõe ao tempo e aos elementos). Não era novidade: a religião é um bordão que acompanhou uma fatia de leão do tempo em que há história para contar. No adro da igreja, o olhar moveu-se na vertical, à procura da torre cimeira. Era uma torre muito alta. Não tinha varandim que pudesse oferecer o palco precisado para o reencontro com um módico de lucidez. Talvez se pudesse refugiar no campanário; talvez houvesse, entre os sinos da igreja e a parede-estuque que cobria uma camada de tijolos por sua vez assente no granito original, um pequeno espaço que se prestasse à atalaia de que precisava.
Às escondidas, subiu ao campanário. O entardecer, com sua luz desmaiada, não compunha uma tela baça que impedisse a vista privilegiada sobre a paisagem que se espraiava por quilómetros e quilómetros. Do campanário, podia estender o olhar para todos os quadrantes da rosa-dos-ventos. Sentou-se num banco gasto, à espera de sentir o incómodo de cada vez que os sinos fossem convocados a noticiar o andamento do tempo. Não teve de sentir o incómodo. Os sinos estavam avariados – ou o tempo fora feito presa de uma feérica hibernação e ele tinha todo o tempo do mundo para encomendar a redenção de si mesmo.

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