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Tinha empinado muita educação
com punhos de renda e rezas abundantes. Escola com bênção das freiras. Os
progenitores já tinham passado pelo mesmo crivo. Era um legado entre as
diferentes gerações. As tradições eram pedras graníticas com lugar inamovível.
Dizia-lhe a avó paterna: “as boas raparigas
vão para o céu. Tens de ser boazinha, que o bom deus de ti não se esquecerá.”
A rapariga perguntava, ao início da meninice ainda ingénua: “e as meninas más, onde vão ter?”, para
ver a avó a mostrar a boca desdentada enquanto a voz cavernosa soletrava todas
as sílabas de “para o inferno!”
Mas a miúda tinha nascido com o
diabo no corpo. Os requintes, a etiqueta a rodos, as palavras bem medidas, os
modos militares à mesa, a moralidade excessiva das freiras e dos priores na
escola, os desafetos da mãe vassala e entristecida e do pai muito ausente – tudo
eram sobressaltos interiores. A rapariga crescera. Dera alforria ao pensamento.
Com a ajuda de uns livros emprestados por uns amigos da escola. Esses amigos
haveriam de ser proscritos quando o pai, enfurecido, descobriu os livros
subversivos.
A rebeldia foi tomando conta do
corpo à medida que avançava pelos contrafortes da adolescência. Perdera o medo
ao pai. Já não considerava a submissa mãe, aquela mulher que se anulava quando
o pai estava presente. Os avós tinham morrido. Sobravam as avós, mas
faltava-lhes saúde para se inquietarem com os desvios da neta. Não esperou pela
maioridade para sair da mansão da família. Estava-se nas tintas para as
mordomias. As coisas, na sua materialidade, deixaram de ter serventia. Recusou
a mesada farta que o pai, num acesso de consciência, lhe quisera oferecer
(depois de ameaçar deserdá-la, numa discussão na véspera). Arranjou trabalhos
indiferenciados, biscates que serviam para pagar os estudos e a parte do
aluguer do pardieiro que partilhava com uns amigos.
Um dia, foi acordada por uma
mensagem no telemóvel. A avó paterna estava encomendada à extrema-unção. Faltou
ao trabalho e meteu-se ao caminho. Passou pelos pais como se não houvesse
vivalma. Tomou a mão fria da avó. Acariciou-lhe a testa gasta pelas rugas que
se acumularam à velocidade da doença. Segredou-lhe: “sabes, avó, as meninas más vão para todo o lado.” E a avó esboçou o
sorriso final, ainda com força para balbuciar “eu sei, eu sei.”
3 comentários:
As meninas boas também vão para todo o lado. A diferença é que, no mais das vezes, não sabem onde estão ou sequer o que lá podem fazer!
Antes disso, tudo passa pelas definições: o que são meninas boazinhas e meninas más?
Uf! Tarefa impossível, essa!
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