4.4.13

Nenhures


In http://hipervitaminose.com.br/wp-content/uploads/2012/05/radar.jpg
A estatura do navio metia respeito. Sempre se fascinara pelos milagres da engenharia: como era possível pôr a navegar um batelão de tantas toneladas? 
O tempo de embarcadiço era entediante. Estava avisado. A rotina diária incluía triviais operações de manutenção, tirar a água que o mar amotinado tivesse atirado para o convés, inspecionar a parafernália de equipamentos na casa das máquinas, colaborar na limpeza quando o turno fosse esse. Por saber da rotina entediante, metera muita literatura nos haveres embarcados. Era o preço pela emigração nómada que era ao mesmo tempo sedentária: ia de lugar em lugar confinado à estatura do navio que no meio do oceano se fazia exígua.
Não se perturbou com o que mais o incomodava quando pensava nos meses, ou porventura anos, de emigrante na marinha mercante: a solidão da imensidão dos oceanos rasgados. Habituara-se a ter o mar como única paisagem. Descobriu que o mar não era uma paisagem única. Havia diferentes mares, os diferentes estados de espírito que combinavam com os dias trajando a meteorologia que se pusera. Aprendeu que as correntes marítimas determinam a climatologia. E aprendeu a ler cartas oceânicas, a entender a linguagem cifrada dos boletins meteorológicos, a escutar, na torre de comando (por cortesia do comandante), as comunicações por rádio e a ler os sinais do satélite. Era a costela de engenheiro que andara reprimida.
À segunda viagem, fez questão de não ler o manifesto que acusava o destino. Havia por dentro uma pulsão de se sentir passageiro do acaso. Queria saber qual seria a cor dos sentidos se a bússola interior fosse desativada e apenas mareasse pelo leme do navio, os dias que fossem sem avistar o cais de destino. Talvez fosse à procura de um equinócio que a servidão do tempo e do espaço amordaçara no tempo pretérito. Fartara-se das vezes que olhava para o relógio como ritual repetitivo. E cansara-se de ter de saber onde estava, sobretudo quando tratava de travar conhecimento antecipado com lugares desconhecidos pelas bissetrizes de um mapa e do prontuário turístico local. Queria saber o que era sentir-se nenhures. Para se reencontrar com um eu qualquer urdido no cárcere do tempo e do espaço.
Despojou-se do relógio e deixou de espreitar, na torre de comando, para as coordenadas bolçadas pelo satélite. Sem deixar de cumprir as tarefas que se pediam a um embarcadiço, não perguntou por horas nem pelo destino que haveria de ser ancorado. A singularidade da desorientação demandada depressa se entranhou. Ao segundo dia deixou de interrogar a que paragens se deitava o navio. Ao terceiro dia, sentiu uma leveza que jamais conhecera. Ao décimo primeiro dia, quando o navio pediu vaga no porto de destino, tomava-se por um homem novo. Era medicinal saber-se nenhures. 

1 comentário:

Anónimo disse...


Quando olhares escrutam nenhures …

http://www.youtube.com/watch?v=gbT8l8YyORo