15.8.17

Amigos da onça


New Order, “Elegia”, in https://www.youtube.com/watch?v=h4fFnPJoecM    
Reparações de urgência: o imenso candelabro que encimava a sala ameaçava pender perigosamente para um dos lados e não se sabia se os parafusos tinham apodrecido e deixaram de ser servis à sua função. Ninguém queria ver o candelabro esboroar-se com estrépito no chão. Não que estivessem muito importados com o candelabro; eram unânimes: era um enfeite atávico que, para os dias que corriam, tinha perdido pergaminhos estéticos. Não queriam imaginar o que seria o restolho espalhado na sala consequente à fragorosa deposição do candelabro – os milhentos pedaços de vidro pulverizados no chão à espera de alguém para a necessária limpeza. É como acontece em algumas coisas da vida comum: as pessoas fazem coisas não porque apeteça fazê-las, mas porque o seu contrário importa custos insuportáveis.
Todavia, um deles protestava contra o possível desleixo do candelabro. Berrava aos que passavam: era um sinal da identidade que tinha esteios fundeados em tempos ancestrais. Dizia: abdicar do candelabro era meter um punhal bem fundo nas costas dos ancestrais. Não se podia congeminar tamanha falta de consideração. Os ancestrais eram o húmus de parte importante da identidade que cimentava os laços recíprocos. Ainda por cima, ele tinha o que alguns consideravam “voz de comando”. Era ouvido. Era, até, temido por alguns que se habituaram a não discordar dele, para não levitar uma ira malparida que ficara conhecida e não fora pelas boas razões.
À medida que o candelabro se inclinava e o impasse ganhava fermentação, adiando a decisão, uma decisão qualquer (a reparação do candelabro, ou o despojar do teto), alguns pareciam desligar-se do temor reverencial por aquele que dantes consideraram, mesmo sem contrato escrito nesse sentido, chefe. Um chefe sem trono. Insinuou-se a possibilidade de estar na forja uma golpada, tantas as vozes que com o correr dos dias iam mudando de lado. Sentindo-se acossado e cada vez mais sozinho, o putativo chefe acantonou-se na sala e passou a ser o diligente zelador do candelabro. Não deixaria que umas almas desapossadas de alma irrompessem pela sala e destronassem o candelabro. Tomou uma posição de força: teriam de o destronar se quisessem destronar o candelabro. E assim o episódio deu a conhecer o candelabro como a coroa decadente de um chefe que se debatia na sua influência também ela decadente.
O problema resolveu-se sozinho: a meio de uma noite, os derradeiros parafusos, gastos pela podridão e incapazes de ampararem o candelabro, desprenderam-se. O candelabro estatelou-se com fragor em cima da cabeça do lídimo zelador. O homem, à espera de socorro e ferido de morte, teve tempo para balbuciar as últimas palavras, com força, ainda, para erguer o dedo aos demais, acusando-os: “amigos da onça, vocês são uns amigos da onça”.
Os outros – até os que na véspera ainda se mantinham leais ao chefe sem trono – não se importaram. De uma assentada, resolveram dois problemas.

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