11.8.17

Margem (meia-hora)


The Cure, “One Hundred Years”, in https://www.youtube.com/watch?v=ipv9qyTpqGs    
- Apressa-te.
- Tenho de ir buscar os óculos.
- Porquê?
- A luminosidade é feiticeira.
- Tens medo?
- Sim.
- Que medos são os teus?
- O precipício. Não conseguir fugir dele.
- Trazes arnês?
- Quando não me esqueço.
- Eu tenho medo do crepúsculo.
- E eu da gente que apodrece e não toma conta.
- Já te aconteceu sentires a chuva sem te molhares?
- À falta de lucidez...
- Ou um beijo sem rosto?
- Em sonhos.
- Qual é a matéria-prima dos sonhos?
- Dos meus?
- Comecemos por aí.
- Um sobressalto, uma página arrevesada, a tirania do tempo, as pessoas queridas, as pessoas desqueridas.
- Consegues ser domador dos sonhos?
- Muitas vezes pensava que não. Depois mudei de impressão.
- Ensina-me.
- Despoja-te dos arneses que te amordaçam.
- E isso não pode ser mau?
- Só se tiveres medo de ti mesmo. E se for à míngua a confiança.
- Não sei se corro o risco.
- Não tens nada a perder.
- Pode a empreitada decair em caminhos insondáveis.
- E daí?
- Não te mete medo o desconhecido?
- Não o elenquei há pouco como medo.
- Eu fico assoberbado. Sinto uma terrível falta de ar. Acabo por capitular.
- Não chegarás a beber se não um ínfimo quinhão do conhecimento.
- Devo confiar em ti?
- Por que o perguntas?
- Os teus categóricos alimentam a minha angústia.
- És soberano para decidires como queres.
- Devo confiar em ti?
- Talvez não.
- Insisto: que cobrança me pode ser feita se forem sabotados os planos?
- Não ponhas muita confiança nos planos. Começa por uma peça de cada vez.
- Sugeres que é um erro insinuar a perfeição dos empreendimentos?
- Não deves ir para o estirador, sequer.
- Confiamos na maré.
- Por exemplo.
- Incomoda-me ser uma peça avulsa do acaso.
- Incomoda-me mais terçar coreografias que dependem dos outros.
- Essa agora! Podemos imaginar um devir que dependa apenas da nossa vontade.
- Discordo!
- Outra vez o arnês: basta metermos o arnês e estarmos preparados para a contingência.
- Até a contingência é um plano. Ficas à mercê de uma constelação de efeitos exteriores. Não os dominas.
- Se bem entendo, são espúrios os esforços para domarmos o nosso fado.
- É isso.
- Nem vale a pena pedirmos crédito ao tempo?
- O tempo não te ouve.
- Que raio de desempreitada! Sinto-me acossado.
- Podia ser pior. Se te sentisses melancólico, ou indiferente a ti mesmo, ou penhorado pela solidão...
- Já sei, já sei: há sempre o pior sob a joeira por onde nos congeminamos.
- É mais ou menos isso.
- Ou seja: não merece a pena objetivarmos o que quer que seja.
- É a única objetivação aceitável.
- E amanhã, é dia?
- Se quiseres.

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