Poolside, “Harvest Moon”,
in https://www.youtube.com/watch?v=9RdqWm8UHkw
Não acontece todas as manhãs: no desadormecer entaramelado,
espreitar a alvorada por um rasgão da luz e saber que dela virá ao palco um
vinho saboroso, um dia contemplativo por estar embebido em tanta graciosidade,
um dia que apetece esburacar até à medula. Depois de descarnado, fica à mostra
o osso fundo, liso de todas as aderências que ainda possam sobrar. É o estado
preciso para a exegese que ficou determinada.
Não é empreitada diária: olhar por dentro, pelo
mais fundo que se alinhava, e deitar a jogo as interrogações que importam, as
interrogações até mais inquietantes, e as que são impenitentes. É como se fosse
possível virar do avesso e ficar de fora a apreciar o fundo mais fundo do todo
descosido. Na demora necessária: a transfiguração do eu para a sua
exterioridade não determina a liquidação do eu, a complexidade impõe a dilação.
Às vezes, impõe-se saber as bainhas que são os nós da alma, indagar se elas não
foram contaminadas por um pensar adulterado, saber, na medida do possível,
interrogar os conceitos operativos que são as ferramentas da análise. Pode ser
uma empreitada íngreme. Não se compadece de tergiversações, nem pode
contemporizar com uma hermenêutica interior que desembainhe a frivolidade.
No âmago da função, tudo se passa como se o eu
fosse desconstruído, as milhentas peças desconjuntadas e empilhadas à espera de
sopeso. Uma a uma, sem esquecimento. Cotejando-as, no desembaraço de quem areja
as impurezas adicionadas com o marégrafo do tempo. Dispensando as vozes
exteriores que ciciem pregões exaustos. Absolvendo do pretérito os embaraços
reconhecidos, por absoluta desnecessidade da contínua culpabilização, por
eterna inutilidade dos arrependimentos. E depois de estimado o osso fundo,
juntam-se meticulosamente as peças, uma a uma, cada uma no seu devido lugar, até
se formar o todo que fora desossado. Um todo que pode ser igual, ou fendido pelas
diferenças – não importa o resultado.
Fica-se então à espera de nova alvorada que
ponha à prova a função heurística, na improvável redenção do que quer que seja –
pois não é de redimir que se apura a função. Mesmo sem a certeza que a balança esteja
calibrada a preceito. Um capital mínimo de confiança é exigível, para não
medrarem flores apodrecidas à nascença, flores rasuradas que venham contaminar
as que fruíam uma pujante saúde.
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