10.8.17

Osso fundo


Poolside, “Harvest Moon”, in https://www.youtube.com/watch?v=9RdqWm8UHkw    
Não acontece todas as manhãs: no desadormecer entaramelado, espreitar a alvorada por um rasgão da luz e saber que dela virá ao palco um vinho saboroso, um dia contemplativo por estar embebido em tanta graciosidade, um dia que apetece esburacar até à medula. Depois de descarnado, fica à mostra o osso fundo, liso de todas as aderências que ainda possam sobrar. É o estado preciso para a exegese que ficou determinada.
Não é empreitada diária: olhar por dentro, pelo mais fundo que se alinhava, e deitar a jogo as interrogações que importam, as interrogações até mais inquietantes, e as que são impenitentes. É como se fosse possível virar do avesso e ficar de fora a apreciar o fundo mais fundo do todo descosido. Na demora necessária: a transfiguração do eu para a sua exterioridade não determina a liquidação do eu, a complexidade impõe a dilação. Às vezes, impõe-se saber as bainhas que são os nós da alma, indagar se elas não foram contaminadas por um pensar adulterado, saber, na medida do possível, interrogar os conceitos operativos que são as ferramentas da análise. Pode ser uma empreitada íngreme. Não se compadece de tergiversações, nem pode contemporizar com uma hermenêutica interior que desembainhe a frivolidade.
No âmago da função, tudo se passa como se o eu fosse desconstruído, as milhentas peças desconjuntadas e empilhadas à espera de sopeso. Uma a uma, sem esquecimento. Cotejando-as, no desembaraço de quem areja as impurezas adicionadas com o marégrafo do tempo. Dispensando as vozes exteriores que ciciem pregões exaustos. Absolvendo do pretérito os embaraços reconhecidos, por absoluta desnecessidade da contínua culpabilização, por eterna inutilidade dos arrependimentos. E depois de estimado o osso fundo, juntam-se meticulosamente as peças, uma a uma, cada uma no seu devido lugar, até se formar o todo que fora desossado. Um todo que pode ser igual, ou fendido pelas diferenças – não importa o resultado.
Fica-se então à espera de nova alvorada que ponha à prova a função heurística, na improvável redenção do que quer que seja – pois não é de redimir que se apura a função. Mesmo sem a certeza que a balança esteja calibrada a preceito. Um capital mínimo de confiança é exigível, para não medrarem flores apodrecidas à nascença, flores rasuradas que venham contaminar as que fruíam uma pujante saúde.

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