Wand, “Be Karma”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZzMudUqKfPA
As televisões, sanguinárias na desgraça,
depressa no local dos acontecimentos. Entre as tarefas do repórter, a recolha
de depoimentos. Procuram-se testemunhas presenciais. O repórter de serviço tem
de estar equipado com uma certa destreza para apurar quem conta patranhas,
apenas ávido dos seus “cinco minutos de fama” (que, as mais das vezes, não
passa de um punhado de segundos; por que se enraizou este costume que é uma
dimensão manifestamente excessiva dos factos?). Só devem contar os que tiveram
os olhos na catástrofe. O repórter tem de ser uma espécie de polícia em fase de
instrução de um crime, decantando os mentirosos (e descartando-os da função) e
os que têm relevantes coisas para narrar.
Alguém faz chegar ao conhecimento do repórter
que ali ao lado está um par de velhinhos que assistiu a tudo. Dizem: “com os olhinhos que esta santa terrinha há
de comer, se Deus Nosso Senhor, Jesus Cristo o consentir.” O repórter
desloca-se ao local. Os velhinhos estão em delírio. Não cabem, os seus corpos, no
transe mental de quem foi testemunha de primeira água da catástrofe terrível
que assolou a terrinha. “A santa terrinha”,
apressa-se a velhinha a corrigir, de rosto macambúzio, ao entender que o repórter
apoucava a aldeola (“a aldeia, se faz
favor!”). À singela pergunta do plumitivo (“façam o favor de dizer o que viram”), veio a sobreposição dos dois
velhinhos. O repórter, imerso na sua juventude, não teve coragem para
interromper o momento arcaico diante dos seus olhos (não fosse ter de ouvir o
raspanete: “ó jovem, antiguidade é um
posto! Não se interrompe os mais idosos.”):
- Ela: foi
tudo depressa. Eu tinha ido às cortes...
- Ele: sabe?
jovem, eu não tenho cheiro, mas tenho os outros sentidos apurados. Foi quando tirei
o cobertor das pernas...
- Ela: ...dar
de comer aos animais. Temos lá uma vaquita que está prenhe e eu...
- Ele: ...e
a custo levantei-me, ouvi um barulho estranho. Ao abrir a porta...
- Ela: ...tenho
de deitar um olho à bichinha, não vá ela parir a qualquer altura, ou então isto
faz-me lembrar...
- Ele: ...fiquei
sem respiração, era tanta a poeira que não via nada. E estava um calor que não...
- Ela: ...quando
fui mãe, sabe jovem? Não sabe, pois nunca será mãe, ou nunca se sabe – tenho
lido umas coisas nas revistas e parece que estas modernidades já permitem que
homens transviados possam ser mães – e uma mãe quase a sê-lo...
- Ele: ...se
aguentava e então chamei a mulher, aos berros, que, sabe? ela é meio
surda...como nota, nem sequer reage ao que...
- Ela: ...uma
mãe quase a sê-lo gosta de carinho...não é que noutras alturas...
- Ele: ...digo
– e berrei-lhe: “ó mulher, ó raio da mulher, chega-te aqui que parece que o
mundo...”
- Ela: ...não
queira afeto...mas é diferente, pois nunca...
- Ele: ...está
a desabar. Andá lá, mexe-te, c’um raio, nunca chegas...
- Ela: ...se
sabe quando os homens estão p’ra aí virados e então, como diz a minha
sobrinha...
- Ele: ...a
tempo, sempre atrasada...olha o que se passa aqui...
- Ela: ...
– sabe? ó jovem, a minha sobrinha é formada na universidade, numa coisa
esquisita, psi...psico...psicologia, ou lá o que é...
- Ele: ...diz-me
lá, o que é isto que não sei onde deixei os óculos e sem eles...
- Ela: ...uma
cabeça, aquela garota! E ela disse-me que as mulheres não podem ficar à
espera...
- Ele: ...não
vejo nada”. Mas o que estás p´ra aí a falar que nem uma metralhadora, ó raio da
mulher, já estou a ver que estás toda babada...
- Ela: ...do
carinho dos homens..., mas não foi assim que fui educada, sabe? jovem, pois
deve saber, que agora as coisas são todas diferentes e lá para a cidade...
- Ele: ...a
falar da sobrinha querida...pois é, pois é, ó mulher, o jovem quer saber da catástrofe,
vê lá tu que...
- Ela: ...eu
sei que é tudo uma rebaldaria, leio as revistas (devagar, que só tenho a
terceira classe)...
- Ele: ...temos p’rá aqui mortos e tudo e tu a
falares dessas coisas das revistas e das sabatinas da tua sobrinha...
- Ela: ...mas
no fundo, lá no fundinho, eu não passava sem o meu Amílcar...como vê, jovem, o
homem é abestalhado e sem modos, feio que tolhe, mas é o homem da minha...
- Ele: ...não
tens remédio, mulher, não tens conserto...
- Ela: ...vida.
- Ele: ...maldito
destino este...
- Ela: ...estás
a falar de quem? É de mim, por acaso?
- Ele: É
agora que me vais aborrecer? Está tudo a ser filmado...tem tento, mulher.
- Ela: És
um brutamontes. Bem avisou a minha mãezinha (Deus a guarde a preceito), que
devia ter ficado com o teu primo.
- Ele: Ficavas
bem servida, c’um catano. Não tenhas dúvidas.
- Ela: Ao
menos, não era boçal. Podia ser um finguelinhas e estar sempre adoentado, mas não
era rude como tu.
- Ele: Não
digas mais nada. O que tu querias, era ser viúva há muito tempo...
- Ela: Cruzes-credo,
por quem me tomas, homem do diabo?
- O repórter: Se não se importam, podiam dizer algo sobre o acontecido?
- Ele: Olha
o empertigado...mal-educado!
- Ela: Os
seus paizinhos não ensinaram que não se interrompe as pessoas quando estão a
falar?!
- Ele: Veja
lá se quer que lhe parta um cajado nas costas...
- Ela: Queres
que o vá buscar, querido? As tuas cruzes não te deixam baixar...
- Ele: És
um amor, vitelina da minha vida! Vai lá para eu tratar da saúde ao citadino.
- Ela: Vou
num pé e venho no outro, minha bestazinha de mel.
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