First Breath After Coma, “Umbrae”,
in https://www.youtube.com/watch?v=IAucRgehvMY
Defeito de fabrico – supunha ser seu tormento
incorrigível. Era hábito protestar contra as usurpações assim avalizadas. (Não
se entenda usurpação no sentido literal, antes pelo viés de metáfora.) Houve
tempos, demorados tempos, que andou com sombras perenes tingindo com cor
apropriada (para as sombras colonizadoras) o céu assim melancólico.
Às vezes, sombras que sobravam do restolho,
contrariedades, temerosas adversidades apanhadas em má sementeira, dias coalhados.
Outras vezes, apenas sombras imaginadas. Queria-se convencer que as sombras que
vinham ao regaço, em sendo intangíveis, fruíam das outras que houveram palco e deixaram
cicatrizes. A certa altura, já não sabia que sombras pertenciam ao monólogo dos
murmúrios contra si orquestrados e as que vinham ao papel na forma de
pesadelos. Nem sabia a ordem de causalidade: julgava que certas sombras tiveram
lugar por causa da persistência de outras apenas oníricas – tal como acontece
com os supersticiosos que julgam não ser boa ideia pensar num mal qualquer,
pois isso constitui chamamento desse mal.
Agora era como nos filmes que têm um bom final:
às tempestades segue-se o tempo abonançado e toda a gente fica feliz (menos os
espíritos desprovidos de bondade, mais propensos ao espetáculo majestoso e
destruidor de uma tempestade). No horizonte já não adejavam sombras. Era o céu
em todo o seu esplendor, soalheiro depois da alvorada e magistralmente
estrelado depois de o sol dizer adeus ao dia. Julgava ser razão de congratulação.
Pelo menos, assim mandavam os cânones. E, todavia, um vazio tinha tomado conta
por dentro. As cicatrizes avivaram-se. Não sabia explicar. A ausência de
sombras não chegava para deitar o rosto ao feixe de vontades desinquietadas que
vinham escritas em tinta da China no horizonte descomposto de sombras. Porventura
era um daqueles agentes fora da regra para quem as tempestades eram matéria-prima
indelével, muito mais do que um passatempo de amantes da meteorologia; matéria-prima
de estrofes embebidas no poder demiúrgico da devastação de uma tempestade.
Aprendeu: só quando se experimenta o oposto do
que se tem, e que se julgava ambicionar, é que o seu contrário, dantes desprovido
de valor, regressa à cumeeira das coisas estimadas. Sem isto querer dizer que só
se sentia desembaraçado de estorvos na hipótese das sombras; tudo o que queria
dizer, em fruição da aprendizagem recente, é que um equilíbrio bem medido de
uma coisa e do seu contrário é mandamento recomendável.
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