4.8.17

Tiro certeiro


Madrepaz, “Sopra o Vento”, in https://www.youtube.com/watch?v=WMPH0c3Qtio    
Era de músculo que precisava. Do músculo nutrido, mas do músculo com exatidão. Pois havia o alvo às escuras e o tiro tinha de ser certeiro. Só tinha um tiro. Não havia meias-tintas. Ou acertava, ou era o tonitruante fracasso. Antes, deitou o pensamento de molho. Vieram perguntas de empreitada. Tinha de disparar o revólver? A vítima à espera do tiro certeiro era justa vítima, ou apenas um inocente apanhado no meio de um tiroteio que não lhe dizia respeito? Que querela tão soberba se inclinava a favor do tiro disparado? Qual o proveito do tiro, em não sabendo, sequer, se ele teria vencimento?
Enquanto as perguntas iam e vinham e das respostas não havia sinal de vida, o revólver arrefecia. Parecia que a cada instante em que as interpelações esperavam por réplica à altura, o revólver ganhava ferrugem e perdia uso. Talvez não fosse má ideia retardar o tiro. Ou, até, adiá-lo sem inscrição no calendário (que era o mesmo que gorar a demanda sem o admitir, escondendo-se atrás de um madraço procrastinar). A arma arrefecia nas mãos e as mãos ganhavam a frieza descarnada que fora emprestada pela arma. Um formigueiro incómodo começou a tomar conta das mãos. Devia ser o torpor a erguer-se ao promontório de onde o dia exercia seu império sobre o demais. Vozes repentinas povoavam o pensamento, em surdina. Desafiavam as mãos a derrotarem o torpor, recuperando a sua combustão própria. Essas vozes murmuravam, nos interstícios das frases, tirando-lhes inteligibilidade, “dispara, dispara sem demora”. E as mãos tremiam, frias e sem saberem o que fazer na encruzilhada de demandas.
Não estava seguro de premir o gatilho. Sondou o coldre para atestar se havia balas metidas no devido lugar. Podia ser que a arma estivesse vazia. Era a exculpação que precisava para impedir que o sinal violento prosperasse, ficando circunscrito aos pensamentos rebeldes que, no auge da sua rebeldia, continham o frémito que queria passar aos atos. A arma continha uma bala. Tudo se congeminava para que fosse obrigado a uma roleta russa adulterada (pois o tiro não seria disparado sobre si mesmo). Mas se nem sequer sabia do paradeiro do alvo, por que haveria de sentir o sobressalto do tiro imperativo?
As mesmas vozes sem rosto incessantemente musculavam o pensamento bélico; elas desfizeram as dúvidas sobre o paradeiro da vítima. Serviram localização GPS. Não havia como recusar a empreitada. Avançou, convencido que não podia atraiçoar a coragem que lhe fora empossada. A meio do caminho, tergiversou. Que se danasse a coragem, que se danassem as vozes sem rosto em estrepitosa troça acusando o medo que dele tomou posse. A meio da ponte, tirou a pistola e mandou-a, com a força toda que tinha no braço, ao rio, o mais profundo possível.
Foi o tiro mais certeiro que podia ter desferido.

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