16.8.17

Sub zero (bandeira)


Heróis do Mar, “A glória do mundo”, in https://www.youtube.com/watch?v=jpyOizN2vfw    
Sinais. Os imperativos sinais de pertença. Que outra alternativa, se não respeitá-los e, nos casos de fervorosa contemplação, endeusá-los? Aprende-se desde dos tenros anos escolares. A bandeira tem um significado. As suas cores, também. O escudo armilar – e por aí fora, numa narrativa homérica. Invocam-se gestas de antepassados que ficaram com nome próprio selado na História. Cimentam-se as lealdades, que é desde pequeno que se interiorizam as boas práticas. Às vezes, quando a bandeira ondeia como a pauta onde deslizam as notas do hino, mete-se a mão ao peito: sente-se o peso da pátria e, caso aconteça terçar o peito às balas em defesa de honra da pátria, vertem-se umas lágrimas de comoção quando os olhos marejados testemunham o momento imbativelmente solene da parelha bandeira-hino.
E ai de quem dissidir, depressa apedrejado no público púlpito onde os hereges da nacionalidade (ou, dir-se-á, em convocatória do rigor, do nacionalismo) são julgados. A ninguém é dado o topete de escarnecer os símbolos que estão (entendimento dos bravos patriotas) um degrau abaixo da metafísica local. São condenados em juízo sumário, alistados no exército dos renegados. Talvez não sintam o sono locupletado se assim acontecer; afinal, são atirados para esse fosso onde, de acordo com os implacáveis algozes, vegetam as criaturas desonradas.
E depois os olhos atentos veem atletas abraçados à bandeira em certames internacionais, quando ostentam proezas e proclamam, ufanos, que é um triunfo de todos os patrícios simbolicamente representados na bandeira. Supõe-se que os atletas sejam devidamente instruídos pelos burocratas da respetiva federação desportiva: eles competem em representação da pátria e, em alguns casos, acontece a pátria pagar-lhes generosos subsídios para se treinarem como deve ser para açambarcarem o ouro medalhado. Os atletas, pobres almas condenadas ao respeito hierárquico, anuem. Sem estacionarem o pensamento durante uns minutos, o suficiente para se interrogarem se o esforço físico preciso para arrebatar a proeza foi o resultado da convergência da energia mental dos patrícios nesse sentido, ou se foi apenas (e que grande apenas) o produto do esforço do corpo do atleta.
A pátria (quase) inteira exacerba o sentimento de pertença. O triunfo na competição desportiva prova: somos-melhores-do-que-os-outros! Eu, que não me comovo com estes preparos pátrios, nem tenho o dote de zelar pelos símbolos do que se alega ser cimento identitário, sou tomado por um acesso alérgico. Não se respeita o atleta como ele merece. E vejo a pátria de emoções inflamadas descair para um pueril sentimento de comparação com os demais, como se fosse preciso (como uma escondida textura do cimento da identidade) esbofetear nas ventas dos outros que somos melhores do que eles. Parafraseando Eduardo Lourenço, vangloriar a pertença nacional através dos “bons exemplos” em que somos exemplo acima dos demais, é do domínio da infantilidade, um narcisismo próprio de quem é terrivelmente inseguro das suas capacidades. É uma vã glória.
Bem-vindos ao terreno minado do nacionalismo.

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