Lamb, “Gabriel”, in https://www.youtube.com/watch?v=4oLp8CocUAY
“Eu
consigo voar” – dizia, seguro do que dizia, enquanto esperava, desde a
varanda líquida sobre os limites da noite, que viesse o tempo autorizado para a
jornada. Só sabia que era longe. Muito longe. Não se amedrontava por não saber
quantas as léguas que distavam entre o lugar escolhido como partida e a longínqua
paragem que seria o final da jornada.
Olhava entre as nuvens, não fosse um pássaro
mensageiro deixar cair as palavras que desemaranhavam o enigma. Não estava
impaciente. Já fora assim: dantes, só arriscava a empreitada se soubesse, desde
a casa da partida, por onde seria dado a seguir e o número de léguas que a
viagem compreendia. Desaprisionara-se da tirania dos números para mero efeito
estatístico. Se havia coisa que tinha aprendido na madurez já abraçada (com os
anos levados em inventário), é que os números são uma medida disforme das
medidas que interessam. Algum povo dera o contributo para o compêndio dos
lugares-comuns, a este respeito, proclamando “quantidade não é qualidade”.
Por isso, tinha a certeza de poder voar, mesmo
não tendo os deuses conferido as asas que, mandam os cânones, são imperativos
apetrechos para a função. Não eram precisos números, nem a tirania da matemática,
para desmentir os enunciados das ciências que se agrilhoam a marmóreas colunas
inamovíveis. Era uma maneira diferente de dizer que se é capaz dos impossíveis,
assim seja a vontade alinhavada. Voaria, pois, para saltar as léguas tantas que
o separavam do cais que seria o destino a aportar. Como se de uma hibernação se
tratasse, e a jornada, por mais longa que fosse, apenas tivesse a dimensão de
um parêntesis entre duas palavras tingidas de bondade. Contra todos os prognósticos
e as “vozes avisadas” que não cessavam de murmurar a impossibilidade da
empreitada. Contra a sua própria capitulação, que seria o fermento insuprível
em tempos passados, quando tratava de assobiar ao céu os impropérios acometidos
na terrena demanda. Mas isso era quando não sabia decantar as coisas que
interessavam das outras, numericamente maiores, que eram chãos abundantes, mas improfícuos.
Demorou, mas ainda foi a tempo: os números são
ardis ostensivamente preparados por desdeuses disfarçados de divindades, só
para deixarmos de ser o que somos capazes de ser. Daí dizer, talvez
delirantemente ufano, que conseguia voar.
Sem comentários:
Enviar um comentário