31.12.21

Esta estranha sensação de estar sentado no lugar do pendura e não poder segurar no volante

Trentemøller, “Dead or Alive”, in https://www.youtube.com/watch?v=JxJKRSwLB3E

Sob a penumbra de um pesadelo: uma estrada sinuosa percorrida num automóvel anquilosado, sem as reparações que o habilitavam a passar na inspeção. Mas não é a estrada, ou o medonho estado do automóvel, que amedrontam. É estar sentado no banco da frente, no lado oposto do condutor, e olhar para a esquerda e reparar na falta de destreza do condutor.

Ou um pesadelo ainda pior: a mesma estrada, sinuosa e solavancada; o mesmo condutor; desta vez, o automóvel moderno, em bom estado e dotado de todas as modernas tecnologias que ajudam a condução. E, mesmo assim, sentado no banco da frente do lado direito, a mesma sensação de insegurança que parece apertar a jugular, à espera que a próxima curva seja desfeita sem sucesso, o automóvel despenhando-se de um alcantilado desfiladeiro antes de se contorcer em sucessivas voltas até encontrar o repouso do vale situado no ermo onde o desfiladeiro termina. E tudo por causa do condutor. Do péssimo condutor.

O pesadelo prosseguia, com dois passos dados atrás na cronologia: sobressalto pelo permanente desassossego causado pela inépcia do condutor, proponho a troca de lugares. Invoco, em mentira despudorada, mas exigível, a condição de piloto de testes. (Um eufemismo para motorista, uma arte que entrou em desgraça ante acontecimentos recentes que retratam os motoristas como kamikazes que voam em estradas e autoestradas.) O condutor, assoberbado e mergulhado para o interior de si mesmo, não responde. Porventura nem terá ouvido as minhas palavras – e, menos ainda, sentido como estou aterrado pelo abismo que parece estar a uma braçada de distância.

Acordo do pesadelo. Não estou como passageiro involuntário de um automóvel conduzido por um incapaz para a função. Vejo a estrada diante do olhar, como se a tivesse memorizado numa viagem imaginária. Vejo como é sinuosa e solavancada. Vejo como o automóvel recebeu as últimas atualizações e rivaliza com os seus émulos, os originais que são a nata da modernidade. E vejo o rosto do condutor pendido sobre o pesadelo já ultrapassado, um espelho que parece perene. E não perece.

30.12.21

O homem da chuva (short stories #371)

Yard Act, “Fixer Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=rPIk27ve3uo

          Os ecos do outono não desautorizam a saída à rua. Quando chovia e a maior parte das pessoas se escondia da chuva, ele errava pelas ruas. A chuva não o amedrontava. Andava sem rumo, tempo e tempo com a chuva a ensopar as roupas e as partes do corpo que não estavam protegidas. Não suscitava curiosidade dos demais. Primeiro, eram poucos os que, àquela hora e sob os efeitos da intempérie, arriscavam sair à rua. Nesses dias tempestuosos, era como se grande parte das pessoas se convencesse da quarentena de outrora. Segundo, as pessoas eram indiferentes umas às outras, como se uma dose de misantropia as tivesse invadido pelas veias recetivas. Pelos seus cálculos, a chuva ia demorar-se. Controlava as previsões através da aplicação no telemóvel, seguindo a trajetória esperada que era função do cálculo de muitas variáveis. Não vinha mal ao mundo se a roupa estava ensopada. Depois de despida, seguia para a máquina de lavar. Quanto a ele, os cabelos molhados, dos quais escorriam abundante gotas do que fora chuva, patenteavam a demorada marcha sob os auspícios da chuva. Não fosse a indiferença dos poucos que saíam à rua, perguntar-lhe-iam se não temia uma gripe pela destemperança de desafiar a chuva. Ele, com a calma que lhe era reconhecida, diria que era à prova de gripes por efeito de aprendizagem das muitas deambulações sob a égide da chuva. Os demais, se não o votassem à indiferença que é a medalha que reciprocamente se atribuem, aprenderiam que não somos vítimas dos males se deles não tivermos medo. O homem da chuva era disso o sinal vivo. Foi o seu tirocínio desapalavrado do medo da chuva que o imunizou contra os achaques outonais e invernais. Lamentavelmente, a imunização não funcionava durante a Primavera e o Verão. 

29.12.21

Os arranha-céus são uma mentira

Massive Attack and Liz Frazer, “Teardrop” (live at Later With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=KVHFHZCVLe4

Não digam às criancinhas que os arranha-céus se chamam arranha-céus, não vão elas, embeberadas na sua ingenuidade, considerar a hipótese de os arranha-céus conseguirem arranhar o céu.

Admita-se, em hipótese sujeita a verificação empírica, que os arranha-céus podem reivindicar o nome por que se dão a conhecer. Poderão argumentar que são tão altos que conseguem arranhar os céus. Nem assim a hipótese é de considerar por razões de ordem semântica e de ordem cósmica: não existem céus, o céu é só um. A dar caução à hipótese sujeita ainda a teste, os tão altos edifícios dever-se-iam chamar “arranha-céu”. Se a eles se quisessem referir no plural, teriam as convenções gramaticais de ser alteradas para se escrever “arranhas-céu”. 

Contudo, a hipótese sujeita a verificação empírica não passaria no exame. Os edifícios que se chamam arranha-céus são muito altos, tão altos que irrompem para o céu, parecendo que o chegam a tocar. Só assim acontece quando o teto de nuvens está baixo e a parte mais alta dos arranha-céus fica escondida dentro das nuvens. Fora desta hipótese, os arranha-céus apenas parecem rivalizar com a estatura do céu. Por mais recordes que sejam batidos na construção de arranha-céus, os edifícios ficam longe de chegar perto do céu. Não passam de ilusão de ótica quando são observados à distância, parecendo, por causa dessa ilusão de ótica, que chegam a beijar o céu (e esta seria a imagem mais fidedigna). 

Por isso, estes edifícios deviam mudar de nome para não trazerem os petizes amarrados a uma ilusão. Uma ilusão parecida com os arranha-céus construídos em Moscovo durante a era dos sovietes e que foram um postal ilustrado da propaganda do regime. Não terão contestado, os súbditos mais ortodoxos, a contradição de termos entre os arranha-céus e o comunismo enquanto regime nos antípodas do capitalismo? É que lançar pedra para a edificação de um arranha-céus era uma concessão a um modismo que começou nos Estados Unidos – logo, uma concessão ao capitalismo, porventura não identificada como tal. 

Se a questão fosse perscrutada com critério, ver-se-ia que os moscovitas arranha-céus eram mais uns prédios muito altos que arranhavam o céu da boca do comunismo. Ao que parece, é tão fácil enganar crianças como comunistas.

28.12.21

O museu do futuro

Mac DeMarco, “I’ll Be Home for Christmas”, in https://www.youtube.com/watch?v=c1Pu7UD3_7I

Um dos maiores vícios do presente é querer saber como vai respirar o futuro. São oráculos em barda e uma coorte de historiadores do futuro. Afadigam-se, os adivinhadores do porvir, em destapar o véu do insondável. São dos maiores farsantes que por aí adejam. Eles e os ingénuos que são vítimas do logro, porque o futuro é apetecível e se o puderem saber de antemão, tanto melhor.

Podiam, os lídimos representantes da especialidade, pensar num museu do futuro. A clientela era garantida à partida, sinónimo de êxito económico e de proeza social (pois não calha nada mal instruir as massas sobre os acontecimentos futuros). No museu do futuro, cuidariam de o preencher com profecias várias, das irrisórias às mais ousadas, separadas por diferentes alas. O público seria conduzido, sucessivamente, da ala dos acontecimentos ainda incertos, mas com elevada probabilidade de serem testemunhados, para a ala dos eventos improváveis, mas só possíveis devido à inventividade dos promotores. Adivinha-se que o público demorar-se-ia na segunda ala, tão sedento de descobrir as cores do futuro.

Teria de ser um museu vivo: à medida que as profecias fossem desmentidas, a matéria a elas correspondente teria de ser retirada do museu – pois o futuro, em sua transubstanciação em tempo presente, encomendaria a negação dessas profecias. A ousadia dos promotores do museu recusaria a admissão de culpa pelas profecias obviamente não cumpridas. Quem ousa adivinhar o futuro não tem humildade para admitir que o futuro, quando se cumpriu, não lhes fez a vontade. Uma forma pós-estalinista de refazer a História – neste caso, a História do futuro, como os estalinistas se requintaram a desenhar a História do passado a regra e esquadro.

 O museu do futuro seria a metáfora de uma impossibilidade. O futuro nunca está ao alcance das mãos quando se entretecem no momento possível que é o presente. Sempre que chegamos ao futuro, ele deixa de o ser. Os fazedores do museu do futuro, embebidos na demência dos oráculos sem chão, não têm o arcaboiço para o perceber. São a procrastinação de si mesmos. Não admira que vivam agarrados ao futuro como se fosse a sua tábua de salvação.

27.12.21

Sebastianismo ao alto

Damon Albarn, “The Universal” (live at the Jonathan Ross Show), in https://www.youtube.com/watch?v=OPijRGTKqsQ

Este é um lugar adiado por causa do mito sebastiânico. Prescrevemos a nossa incapacidade atrás do biombo de um messias que prometeu regressar numa manhã brumosa. Não veio, até hoje. E, contra a lógica e as probabilidades da durabilidade humana, continuamos à sua espera. Mesmo que tenha ultrapassado o seu prazo de validade.

Se não é a pessoa em causa, cuida-se de o transubstanciar noutra página do tempo. Episodicamente, emergem promessas de sebastiões. Não são sebastiões, ainda; ajuramentam-se como suas promessas, como se sua fosse a prova de vida e nosso o tirocínio às suas mãos. Até a ver, todos os sebastiões que se inscreveram em páginas da História não passaram de promessas de sebastiões. Mas não aprendemos. Saltamos de promessa de sebastião em promessa de sebastião. Enquanto saltitamos, anestesiando o presente, adia-se este lugar.

O pior dos dois mundos é quando o clamor popular pelo mais recente sebastião combina com o narcisismo potencial do prometido. Ao início, começa por ser apenas um esgar de narcisismo. À medida que o clamor popular se constitui em maré-alta, querendo transformar aquela promessa de sebastião em sebastião efetivo, a vaidade toma conta da personagem. Ainda bem. Assim cai a máscara da personagem e, de potencial sebastião, depressa se consome no estertor da sua ufania. Será dissolvido na indiferença dos mesmos que quase o endeusaram. 

A culpa é de um povo meão que parece desorientado na paisagem onde o seu desfado se confirma. Precisa de uma matriz que o coloque na senda de uma bússola. Precisa de um predestinado que se distinga da mediocridade. Engana-se no diagnóstico. Não há predestinados entre a gesta que se afirma num lugar. Somos todos sangue dessa mediania. Fingir que um de nós nos tirará do nanismo que passámos a ser, é uma farsa. É o palco certo para o adiamento imorredoiro de um lugar que não deixa de ser uma promessa por confirmar. 

O sebastianismo tentacular, matéria-prima da idiossincrasia do lugar, é como uma tatuagem que não se elide. É o esconderijo da incapacidade das várias gestas que testemunharam o definhar do lugar a que dizem pertencer. 

24.12.21

Já não há renas no Natal (conto natalício às criancinhas, com declinação ambientalista)

Nell and the Flaming Lips, “Red Right Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=5QZlUpgTRtg

Reaprendam, petizes: por decreto assinado pelo regente da organização internacional que superintende a paz e as causas politicamente corretas (um senhor vosso conterrâneo, por sinal), este ano não conseguirão deitar o olhar em renas voadoras tripuladas por S. Nicolau (homessa! O Pai Natal) sulcando os céus para distribuírem os presentes que vos calharem por determinação natalícia.

Não se apoquentem os que verterem umas lágrimas de nostalgia. É uma questão de hábito. Daqui a uns anos, quando já não representarem o Natal como uma quimera, como os mais velhos vos ensinam, nem sequer se lembrarão que havia renas a transportar o Pai Natal e as prendas encomendadas. Nessa altura, virá à superfície a vossa boa consciência ambiental. Agradecerão às gerações anteriores o desassombro de mudar os costumes em homenagem aos interesses de animais indefesos.

Ainda não se sabe como o Pai Natal fará a distribuição das prendas. Alguma coisa se há de improvisar. Não vão ficar sem o Natal. Percebem que no mundo muito moderno em que vivem, em que se torna exigente a reconstituição de maus costumes, depressa substituídos por costumes politicamente aceitáveis (até deixarem de o ser mais à frente), não se pode aceitar a exploração de animais pelo Homem (e pela mulher). Não se pode obrigar animais indefesos a trabalhos forçados, sendo apenas instrumentos da vontade dos homens e das mulheres. 

Há vozes importantes que sussurram um segredo mal guardado: o Pai Natal vai continuar em funções e será transportado por drones feitos de propósito para a função. É o que quadra melhor com os ares destes tempos, tão marcados pela herança que a tecnologia nos deixa para memória futura. 

Não se apoquentem, o Pai Natal vai continuar em funções – e é isso que mais vos interessa, precocemente enfeitiçados pelos malefícios do consumismo. O Pai Natal vai continuar em funções. Pelo menos enquanto não houver um adiantado mental a descobrir que um idoso em idade de reforma não pode trabalhar.

23.12.21

Trabalhos forçados

The Limiñanas, “Trois Bancs”, in https://www.youtube.com/watch?v=CFW29oA74Kg

Não se diga desta corveia não saberei. Já não há escravatura (termos em que afiança que o esclavagismo foi abolido). Mas há trabalhos que açambarcam a vontade de quem os faz. São involuntários, porque não ouvem a vontade dos que são arregimentados a prestá-los. Pode já não haver esclavagismo, mas desta forma de escravatura não se escapa.

Acabam por ser forçados, esses trabalhos. Não se congeminando a vontade a seu favor, resultam num produto distorcido. Diz-se que a vontade entra em apneia e o sangue contaminado pelo desfavor da empreitada não corre a seu favor. Não se pode protestar se não pela omissão da vontade de quem devia recusar o trabalho forçado. Como se impõe à revelia da vontade, o trabalho forçado desagua num trabalho forçado.

A vontade de alguém não pode ser o único critério. Há outras vontades que são sopesadas. Quando duas vontades esbarram, a diplomacia aconselha concessões. Concessões recíprocas, em medida variável perante todas as circunstâncias que se jogam. A vontade de alguém tem de ceder perante a vontade de outrem. Não se estranhe que a vontade se omita para que seja possível desembaraçar-se a preceito da empreitada pendente. 

Não sendo tempos de esclavagismo, é legítimo protestar contra trabalhos que se dizem ser forçados? O império do indivíduo adormece à sombra dos aromas que são a trama do grupo. Eis a mala posta para a hipoteca da vontade, encolhida porque o seu tutor é convencido do “bem maior” reivindicado pela voz que fala pelo grupo. O resto não conta (assim mandam os cânones): a legitimidade do porta-voz, a legitimidade da contenda que determina a omissão da vontade do indivíduo para que seja feita a vontade do grupo. Essa é a indigência do indivíduo: pertencer, ou ser convencido que pertence, a um grupo; e ser convencido que, na ordem de precedências, as suas prioridades devem ceder aos imperativos do grupo.

Os trabalhos são forçados sem assim serem reconhecidos. Do sangue em trânsito não se aproveita nada quando ele é endereçado ao gelo farto que fala em trabalhos irrecusáveis. A dança dos adjetivos deixa os indivíduos combalidos. À mercê de trabalhos que fingem não ser forçados, mas são-no. Do indivíduo sobra um nome. Apenas um nome.

22.12.21

Manifesto anticarros funerários

The Smiths, “There Is a Light That Never Goes Out” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=icXQxumuHAE

Fugir dos carros funerários como se fôssemos supersticiosos. Se calhar, somos supersticiosos. E fugimos dos carros funerários por não querermos o mesmo fado dos seus passageiros. É o medo da morte.

Como pode, a menos que seja estultícia, alguém assinar um manifesto contra os carros funerários? Por exemplo: a irritação provocada pelas obras diurnas nas estradas, levando a bílis a interrogar por que não são feitas as obras quando as pessoas estão a dormir e quase não há trânsito nas estradas? É um assomo de egoísmo, pois ninguém perguntará se é aceitável exigir que os operários são obrigados a laborar quando deviam estar a dormir.

Eis a analogia com os carros funerários: os féretros podiam ser deslocados durante a noite, usando um raciocínio similar ao da necessidade de obras noturnas quando as estradas delas precisem. Merece um cadáver tamanho tratamento clandestino? Não há de merecer ser deslocado à luz do dia, como se a circulação lhe fosse vedada por já não pertencer aos vivos? Ou: deviam ser remetidos para as viagens noturnas para não incomodarem os viventes que se agarram à vida sobretudo quando sentem o odor da morte a adejar como um vulto episódico?

A morte é o fermento do medo. O medo é legítimo para quem não resolveu as pendências com a vida (ou será com a morte?) e despreza-a como representação de uma injustiça que os vitima. Um carro funerário é uma exibição de morte. A exibição do destino fixo que se inscreve na cartografia que habitamos. É uma estultícia pretender proibir a circulação de carros funerários; os mortos têm direito a um derradeiro momento de dignidade. Mas a dignidade da vida legitima a ativação da superstição ao mudar de faixa de rodagem para não ficar na retaguarda de um carro funerário. 

Na contradição de direitos, que se sobreponha o direito do vivo porque esse conta para os vivos, ao contrário do passageiro do carro funerário. O morto não fica ofendido quando os vivos fogem do carro funerários.

21.12.21

Lado B

No Words Left, “21 Grams”, in https://www.youtube.com/watch?v=7kkFi0ZarcY

Era no tempo em que os discos tinham um lado B, o parente pobre da música que o lado A dava à estampa. A música do lado B ficava destinada ao anonimato. Só um punhado de especialistas seriam capazes de a nomear. Hoje, tudo ficou mais democrático. Não há lados – vem tudo no mesmo lado, sem ordens de primeira ou de segunda grandeza.

O tempo do lado B era quando a injustiça não ecoava do lado menos nobre. Ninguém protestava. Ninguém desafiava os critérios de inventariação do lado A e do lado B. Eram um dado adquirido. Esse era o pior lado da moeda: éramos abúlicos, consumidores passivos dos lados A e B e, pior ainda, muitas vezes propositadamente omitindo a existência do lado B.

Mas depois crescemos. E a tecnologia connosco. (Ou o oposto, não vem ao acaso apurar a ordem dos fatores.) Não queríamos saber o que pertence ao lado A e ao lado B. Despachamos os lugares-comuns e escolhemos, sem concessões aos deveres adquiridos, o que entronizamos como lado A e lado B. Até que, numa perícia das nossas capacidades, já não deixávamos que um lado A existisse e que o lado B fosse entendido como a sobra de menor igualha. Mais tarde, se a rebeldia nos abraçou numa encruzilhada do tempo, voltámos a admitir o equinócio dos lados A e B para intencionalmente preferirmos o lado B. Armámos guarda em favor da minoria. Investimo-nos como minoria.

O lado B constituiu-se no lado principal. Recusámos a adulteração da terminologia: não dizemos que o lado B, por ter sido preferido, passou a ser o lado A. O lado B continua a ser o lado B, só que mais importante do que o lado A. Os atritos da conformidade ganham irrelevância. Assim como a popularidade do lado A, depressa conduzido ao abismo da indiferença.  

20.12.21

Do pano puído

Low, “Hey”, in https://www.youtube.com/watch?v=uLYmrHBzMqI

É o medo que açambarca o sangue, tingindo-o de frio. Não se sabe que vultos adejam lá fora. Que podem esses vultos? A rua intimida. Convida a ficar em casa, como se, de repente, deixássemos de ser gregários. Parece que o mundo inteiro se tornou um anátema. Feito de um ecossistema que não pertence à nossa pele.

Pode ser que seja apenas um pesadelo. Os chacais cercam o corpo como se ele já não passasse de uma ilha. O rosnar dos mastins eleva-se mais depressa do que o sol nascente e invade os ouvidos com um lampejo de medo. Não se sabe quem personificam os chacais. Oxalá fossem apenas uma metáfora, o incindível ornamento que retrata as dores de um mundo que parece um corpo estranho. E, todavia, o sobressalto entranha-se à medida que os minutos avançam contra o temor. 

Parece que somos quase todos párias. Só uma oligarquia escapa – os que tomam por sua a fazenda avalizada por um mundo que foi feito para ser desigual. Os apóstolos da igualdade foram silenciados, ou derrotados perante o desmentido da realidade. Os fautores da propaganda enaltecem este lugar em que vivemos: somos felizardos, porque o lugar que nos acolhe é um paraíso. O choque frontal com o cenário que pisamos é de outra narrativa. A prática não quadra com a teoria. A teoria está a soldo de uma oligarquia que tenciona anestesiar perenemente os demais.

Mas estes não são uma massa inerte. Foi-lhes dada alguma instrução e, os que se embeberam num espírito crítico, usam a sua própria lente, que há muito dissidiu da lente oficial que fantasia um paraíso. Não passa de um paraíso prometido, ou de um paraíso perdido, consoante o grau de deceção que sobressalte os observadores atentos. Os outros, sitiados pela letargia a que foram convidados pela oligarquia, não têm opinião formada. Não chegam a perceber que passam um cheque em branco aos procuradores do sistema instituído. São cúmplices da dilação do paraíso prometido, que se eterniza como promessa não ajuramentada.

Assim assentamos num pano puído, disfarçado de lantejoulas que ajudam a compor a farsa. Não é um pesadelo, ou sequer um inocente sonho. É o pano em que assentamos.

17.12.21

O céu dezembrou (persona grata)

Max Richter, “Origins” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=luVaTLV0jlM

Caía a infâmia sobre os ombros cansados. Sabia porquê – não era em inocência que temperava a angústia. Podia ser que dele dissessem que era persona non grata. Não mudaria. Aquele era o eu que sabia ser. O mundo que se habitasse a ser povoado por esse eu.

Os dias eram consecutivamente amenos. O sol amedrontado não mostrava o dezembro que estava. Muitos, não como ele, conviviam alegremente com a permanência de dias soalheiros. Mas ele era a persona non grata, o provocador que arremetia pelos labirintos onde se terçava a rebeldia. Queria um dezembro à moda antiga. Um dezembro que já tivesse o aroma do Inverno. Sabia que ainda não era Inverno, que estava por dias. Mas as estações são cada vez mais apeadeiros onde repousam as convenções. E estas limitam-se a convocar a artificialidade. 

Naquela manhã, o céu acordou dezembro. Dezembro como conhecia dezembro. Não fosse pelos olhos marejados pelo vento invasor, diria que a manhã recebera um elevado patrocínio. (O pensamento empurrou-o a dizer que o elevado patrocínio fora conferido por uma divindade, mas o ateísmo cimentado castrou a frase antes do seu óbvio termo.) Antes que fosse tarde, as tarefas que estavam na agenda. Assim ficava com o resto do tempo livre para tirar partido de um céu dezembradamente plúmbeo.

Foi uma das vítimas da tempestade que tomou conta da cidade. As pessoas que tinham os seus afazeres foram as outras vítimas, a roupa ensopada e os rastos dos vestígios de guarda-chuvas estilhaçados pelo vento furibundo visíveis pelas ruas fora. Ele não se considerava uma vítima deste tempo – em recusando-se a adjetivá-lo como “mau”, como mandam as convenções estabelecidas e a sua artificalidade. Na confeitaria onde parou para tomar um café, disparou em alta voz, enquanto pagava o consumido: 

- Bom dia. Tenha um bom dia como bom é o dia que se pôs. 

A funcionária, uma mulher de meia-idade já sitiada pela obesidade, enfureceu-se e respondeu com a má moeda dos fígados insultados: 

- O dia está bom só para quem for louco. Louco, ou má pessoa. É o seu caso?

Deixou a mulher sem resposta. Os loucos, e as más pessoas, não se aferem só porque o céu respeitou a tradição e dezembrou. Mas se fosse preciso, não se importava de carregar às costas a etiqueta de persona non grata. Mesmo sabendo, por julgamento em causa própria, que um céu a dezembrar é compatível com uma persona grata.

16.12.21

De perto vejo ao longe

Idles, “When the Lights Come On”, in https://www.youtube.com/watch?v=nyLlswYB_zY

O rapto das emoções traduz-nos autómatos que não seremos. É o que afiança o olhar desembaraçado assim que a boca sente as cores arrematadas pelo miradouro. Às vezes – dizes – temos de chegar a ser lonjura para nos vermos de perto. E insistes: os paradoxos nem sempre o são.

As ruas alindadas pelas festividades advertidas pelo calendário ensaiam uma estranheza que se entranha nos corpos. Povoados por um torpor que os anestesia, arrastam-se convencidos que o tempo não corre segundo os seus termos. Ficaríamos lívidos se não fosse um estremecimento que se levanta com a aurora (e não é pelo frio matinal). Os ossos túrgidos insubordinam-se contra a sonolência que subsiste. Isto não é vida – dizes, como se houvesse na manhã o argumentário da indolência.

Saímos. Apenas saímos. Não sabemos aonde vamos. Precisamos do frio da manhã, do orvalho que enfeita os relvados à volta, das pessoas que, contrariadas, vão a caminho do trabalho, do seu silêncio compungido que nos motiva para a fala. Precisamos de tudo isso, como se nos amotinássemos. Arregaçamos o dia contra os oráculos que diriam ser inverosímil fazê-lo. Mudamos o rosto do dia com a vontade que inventariamos. Compomos as mãos com a maresia que sobe a preceito. Na embocadura do rio, pequenas embarcações de pescadores desafiam a convulsão do rio contra o mar encapelado. Os réditos que mantêm as famílias não escolhem contrariedades. Fomos feitos para desafiar as contrariedades.

Hoje apetece-nos um lugar que não consta da nossa cartografia. Um lugar nem que seja perto, que ninguém, por conhecedor que seja de um lugar, aspira a conhecê-lo como as palmas das suas mãos (segundo os lugares-comuns do idioma). E quem as conhece como as palmas das suas mãos? Há conhecimento de alguém ter feito uma cartografia minuciosa das suas mãos para se afirmar, a favor de uma expressão idiomática, que conhecer as palmas das mãos é a caução de uma metáfora?

Não interessam os descaminhos do idioma. Se falássemos sempre por metáforas talvez tivéssemos perenes palavras cruzadas por decifrar – como se não chegassem os embaraços constantes na comunicação entre as pessoas. Entretemo-nos com as pequenas, irrelevantes coisas. Esse é o desfado da humanidade. 

Se ao menos soubéssemos ser como os pássaros e voar, o olhar panorâmico seria o aval para a visão de conjunto. Mas não voamos. O mais perto que ficamos de voar é quando ascendemos a um miradouro. Dizes: devíamos fazê-lo mais vezes.

15.12.21

Excesso de educação

Mogwai, “It’s What I Want To Do, Mum” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=F7B6-xlSjPA

Não se fala das farsas que nos deixam na posição de arquipélago. Sem o véu das farsas, ora se é boçal e estruturalmente desconfiado, ora se é benevolentemente bem-educado e cortês. Não é no cortejo das afirmações que se povoam as almas sem inventário. Delas é o elevado bocejo que distrai os incautos.

E tudo pode não passar de um tremendo fingimento. Os benevolentemente boçais apenas fazem de conta que o são, dados a uma fortaleza em que se investem contra as aleivosias que o resto do mundo engenha. Os estruturalmente corteses usam essa máscara para esconder as segundas intenções e os maus preparos que se levitam desde o magma mais fundo. E todos seremos atores de um teatro onde depomos no pelourinho das intenções disfarçadas.

Os cavalheiros armados de boas intenções desfilam um excesso de educação. Desfazendo-se em cortesias gelatinosas, aldrabam os descuidados. São as suas vítimas preferidas, os inocentes que se arriam diante de tanto cavalheirismo. Depois, é apanhar distraídos os cavalheiros da tanta boa-educação, dando uso à mais vernacular linguagem, ufanos por terem atraído ao covil dos cândidos meia dúzia de desacauteladas almas, sem piedade destroçadas na baioneta que fala pelos logros de que são tutores. 

Da forma como o mundo está, é mais seguro desconfiar do excesso de educação. À partida, o que se espera do estruturalmente boçal é o pior. A tradução das suas intenções não pode ser um mal maior do que o esperado. O pé oferece-se atrás das possíveis mordacidades que venham a cometer. Mas se o observador estiver na posição de genuíno acreditador das boas intenções de um lobo disfarçado de ovelha, cedendo à perspicuidade das boas maneiras que inundam o espaço em redor, poderá o ato saldar-se pelo maltratar de quem foi creu. De um meirinho do excesso de boa educação só podemos esperar o pior.

Da forma como o mundo está: não tem serventia tirar as medidas pelo espelho que se oferece ao olhar, acautelando a probabilidade, estatisticamente mais relevante, de o avesso ser o saldo obtido quando o rescaldo é feito. O excesso de educação, e as muitas vítimas que deixou no caminho, é a sementeira farta dos estruturalmente boçais.

14.12.21

A ironia do ódio

James Blake, “Say What You Will” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=3OLIHFi7Mb8

Sem os escudos que açambarcam a cor da alma. Apenas as palavras inteiras, desmatadas de privilégios que incarnam na dissimulação. Agigantam-se as marés interiores. O magma sente-se no voluteio das veias, à medida que a combustão encima o dia e a lucidez se perde numa hipoteca. Dizem: de que servem os sismos interiores, se os outros não são para eles convocados? 

Odeia-se. A rodos. Odeia-se, ou pretende-se que o ódio eviscera os outros, alvos escolhidos para a farsa em que é servido o ódio. Nunca vi cabalmente definido o ódio. Na extravagância dos sentidos, os sentidos são confundidos, multiplicados por expoentes que os transfiguram. Um desprazer momentâneo traduzido em ódio, ou uma série que se prolonga no tempo, exaurindo as forças à medida que os intérpretes estão convencidos do ódio que cavalga na espuma dos poros.

Há quem se alimente de ódio (se souberem definir, cabalmente, o ódio). Eu julgo que são aqueles que estão fora da sua própria pele, porque não sabem conviver com o eu que lhes calhou em fado. Não o admitem. Não podem dar parte de fraco: se o ódio em que se consomem fosse o avesso da sua pele, o ódio pelos outros seria o esconderijo onde dos olhos dos demais ocultariam o desprazer de serem. Não se diga que o ódio não é o recorte da mais fina ironia.

O ódio é a continuação do narcisismo virado do avesso por outros meios. Só os fugitivos, os que procuram refúgio da sua própria existência insuportável, são procuradores do ódio. Se pudessem não seriam quem são. Sabendo que o fingimento, não sendo improcedente, não é curadoria destes males, assoberbam-se em sucessivas camadas de ódio. Não se lhes conhece um gesto fortuitamente bondoso. Não rimam com os outros, deles perenemente desconfiados por suspeitarem que são apenas a vertiginosa página encardida de onde eles próprios são bolçados. 

Os que amparam este ódio visceral são apenas a circunferência de onde refrangem os que não sabem se não hospedar o ódio. Os outros, assim odiados, são os vários palimpsestos dos que bem-sucedidos foram no tirocínio do ódio. 

13.12.21

Os mortos que não morrem (short stories #370)

Ólafur Arnalds, “Not Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=IBUYLedYods

          Ah, as garras malditas que não saem de cima da pele e aderem à alma, tornando-a viscosa, uma ostentação de desexemplo. As horas andam devagar. Os relógios já são apenas uma baça lembrança das memórias de outrora, quando tudo parecia viver aprisionado numa fotografia de fingimento. Os lugares são indistintas geografias sem mapa. E, todavia, era quando os dias corriam no seu vagar e tudo parecia ser um encómio da felicidade. Mas essa palavra não segredam os órfãos. Deles não se faz História, pois deles a história vive na sombra da indiferença. Não possuam as mãos aqueles vestígios de cobre arrancados às árvores outonais. Demandam-nos nas cumeadas que hão de ser o chão dos nevoeiros. Agora é a pele que se agarra à alma, tornando-se inconfundíveis. Dantes, era o salvo-conduto do fingimento necessário: a pele fazia de conta que aquela não era a sua alma. Os rostos passavam na esquadria da manhã e não tinham varandas onde assentar. Eram rostos inválidos, como se as demais pessoas não contassem. Eram mortos que não morrem – ou era ele, peixe fora de água, a fugir às responsabilidades devolvidas pelas convenções; ele, irremediavelmente moribundo sem saber, ou sabendo, sem o reconhecer. Atirava o opróbrio da morte para os outros. E não intuía que era o melhor tributo à vida. Talvez não a sua, que essa era a perene cobiça das vidas dos outros – das vidas que nunca chegava a respirar. Não tinha remédio desta apátrida condição que o condenava à solidão. Podia jurar que não existe maior miséria. Mas os outros não queriam saber da sua miséria. Ou da sua solidão. Pois por ele passavam com a mesma indiferença a que aos outros votava. Não os podia condenar. Já passou o tempo, na voragem da juventude, que se convencera ser árvore centrípeta. Agora, por fim, parecia um daqueles mortos que não morrem.

10.12.21

Do sal que tiras das feridas (short stories #369)

The Durutti Column, “Little Mercy (Domo Arigato)” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=1XQCMqcas14

          Não será o contencioso ferido de beligerância que depura o sono dos seus pesadelos. À medida do tempo, uma batuta meticulosa arranha as portas que permanecem fechadas. Diz-se que ninguém lamenta o que não soube ser dor. Não se sabe se é verídico o presságio: há dores que vêm à superfície com a dilação permitida pela hibernação. Não importa. As cicatrizes são um mapa do corpo. Dizem muito sobre esse corpo. Não é critério avisado atirar sal para cima das cicatrizes, correndo o risco de as reabrir. À carne viva não apraz o sal cintado. A erubescência que aviva a carne bolça os demónios pretéritos – os que estiveram na origem das feridas assim fundeadas. A angústia metódica não é o resultado que se extrai dos ventos dominantes. Ecoam as vozes emblemáticas no ocaso onde as portas encerradas se soterram. O porvir pode ser feito de derrocadas, se assim quiseres. A vontade é o domínio que te pertence. A menos que não queiras esconjurar os sobressaltos, não tens de te entregar, submisso, ao altar onde se sublima a nostalgia. Pois a nostalgia é essa ferida sempre aberta, purulenta, e nunca dás conta das dores silenciosas que ela provoca. Pudessem as bocas sussurrar as palavras deleitosas. Pudessem, mesmo que em delito, rasgar as sílabas por gastarem as estrofes encadeiradas. Se o tempo fosse feito desta quimera, serias a coreografia dos loucos que se esquecem do lugar a que outros dizem pertencer. Serias, apenas, a tutoria de ti mesmo. Não um esboço; o sangue inteiro por dentro das veias em constante combustão, o segredo para evitar a capitulação perante a letargia. Nessa altura, saberias tirar o sal que teimosamente acama nas feridas. Deixá-las-ias respirar o ar que é a praça-forte das tempestades. Porque precisas de saber do paradeiro do sismo que te deixa no lugar. 

9.12.21

Mandatário

Interpol, “Stella Was a Driver”, in https://www.youtube.com/watch?v=Bcjmll8D0Ak

Uma voz terceira. Era a voz sua, a falar a de outro. Dantes chamavam-lhe porta-voz. Como se fosse o portador de uma voz outra, através da sua manifestada. Não se importava com a terminologia. Era a sua função. Dar voz às vozes terceiras que o nomeavam mandatário das suas. Fosse o nome que lhe dessem.

Quem estivesse de fora diria que tinha um problema de identidade, pois a sua voz era sempre o veículo de transmissão de uma voz a ele alheia. A voz era sua ser o ser, titulada nos vocábulos dos outros. Nunca lhe perguntaram se não estava cansado que a sua voz fosse usada para dar voz às outras vozes. Em melhor formulação: se não estava em débito com a sua voz, a voz própria, sendo provável que nunca deixou de se guiar pelos seus próprios interesses.

Fugia à demanda. No máximo, ensaiava uma atabalhoada resposta. Não estava habituado a que a sua voz fosse o espelho da voz própria. Ocultava o que fervia por dentro das veias. A sua voz, de tantas vezes mandatada para ser portadora das vozes terceiras, omitia-se nos interstícios das solicitações dos que procuravam os seus serviços. Não deixava de existir, a voz própria. Mas disfarçava-a numa voz a que os outros não estavam habituados. Não era por isso uma voz menor, a voz própria.

Era como se fosse um ventríloquo, as várias vozes adaptadas às circunstâncias. No inventário das vozes, guardava, quase em segredo, uma só para si. Era a voz menos ouvida. Havia quem não o conhecesse quando envergava esta voz. As pessoas estavam habituadas ao mandatário. Não estavam habituadas à pessoa que corporizava o mandatário. O palimpsesto de vozes garantia o anonimato quando se servia da voz que lhe era própria.

O lugar onde tinha o inventário das vozes era como se fosse um deserto de identidade, sem lugar no mapa. A fartura de ser mandatário era ser um apátrida de voz, pois as vozes inventariadas quadravam apenas com um rosto público. E ele não se identificava com esse rosto público quando se dedicava a ser ele próprio, no auge da sua autonomia em que se desprendia de mandatário.

8.12.21

E se a noite fosse de dia?

Happy Mondays, “24 Hour Party People”, in https://www.youtube.com/watch?v=0zWpHxfQvtk

(Mote: https://ionline.sapo.pt/artigo/755173/ruido-de-domingo-a-domingo-moradores-da-movida-do-porto-manifestam-barulho-devido-aos-aglomerados-de-jovens?seccao=Portugal_i)

Vamos virar os relógios do avesso? Mas só consoante as preferências das pessoas. Aos boémios, dir-se-ia que a noite virou dia. Teriam de conviver com a boémia sem ser tingida pelo sortilégio noturno, como se as luzes escassas, aqui e ali temperadas por néones que emprestam esplendor à noite, deixassem de ser o único condimento que apimenta o folguedo. Fá-la-iam, à festança, durante o dia. Sem incomodarem o sono dos que, não sendo noctívagos, usam a noite para dormir, recuperando do esforço de um dia de trabalho.

Para os noctívagos serem boémios à luz do dia, trabalhariam de noite. Dormiriam quando lhes apetecesse, regulando o relógio biológico pela bitola filosófica que ensina que nos devemos colocar no lugar do outro antes de os atropelarmos. Assim sendo, os boémios fariam boémia quando os não boémios não estão a dormir. O ruído tonitruante não incomodaria vivalma. Saíam todos a ganhar – incluindo os estabelecimentos da especialidade, que deixariam de se chamar “noturnos” e seriam rebatizados, eventualmente, como estabelecimentos da boémia: podiam estar abertos vinte e quatro horas por dia.

A solução concentraria em si uma data de vantagens. A começar pela possibilidade de as empresas também trabalharem à noite, alargando os horários de trabalho. Certos quadrantes ideológicos não estariam pelos ajustes, vertendo os seus sonoros protestos. Assim como assim, seriam aplacados os protestos quando admitissem que a solução seria a seu favor. Pois ela não traduziria uma capitulação aos abomináveis capitalistas, mas uma concessão ao hedonismo.

Em segundo lugar, evitar-se-ia uma sublevação popular dos que mal conseguem dormir por causa da boémia que atravessa a noite sem respeito pelo seu sono. Poderiam ser motivadas, estas vítimas, a responder na mesma moeda: durante as manhãs e início de tardes, concentrados nas imediações de janelas com persianas corridas, entoariam alto os seus protestos contra o sono dos que boicotaram o seu sono anterior. Evitar-se-ia que os boémios e os não boémios se guerreassem. Vem nos manuais: a paz é preferível ao conflito.

Em terceiro lugar, seria feita a vontade da deputada Joacine e dos demais sacerdotes da novilíngua que censura a conotação pejorativa de certas palavras, por prolongarem o chamado “racismo sistémico”. A noite podia ser de dia, fundindo-se os dois num só e esbatendo os critérios abusivos que imputam a claridade ao dia e a escuridão à noite (como se a claridade ao dia e a escuridão da noite fossem uma expressão do racismo encapado).

E, no final, estaríamos a caminho de uma perfeição pérfida.

7.12.21

Sudário em chamas

Red Hot Chilli Peper, “Scar Tissue”, in https://www.youtube.com/watch?v=mzJj5-lubeM

Que aroma obstinado adultera os pesares? Parece uma banda desenhada, as cores artificiais que decaem para uma sonora sobriedade quando a noite se ocupa dos lugares e as almas se encolhem de medo. Dizem: ninguém sabe se o sono é o derradeiro. E o medo atabalhoa a pele como o cósmico desmatar dos vultos que assoreiam os sonhos. 

As falas não passam de monólogos que se evaporam no entardecer.

Todas as gotas de suor seriam imprestáveis, em todo o caso. Por muito que os poros exsudem, devolvendo ao exterior uma certa cicuta que envenena as veias, a infecundidade do ato prevalece. As migalhas espalhadas pelo chão não têm nome. Às tonturas não é preciso um lugar altaneiro. Tudo o que se consome em chamas é o sudário. As mãos não procuram dilacerar o fogo. Folgam as cicatrizes, empenhadas em provar que o suor é combustível.

Depois há aquele quadro de Munch que parece ser retirado de um pesadelo vulgar, um pesadelo que ocupa os teares mentais de toda a gente. O grito não emudece nem com os apalavrados fingimentos entre os confrades. Eles sabem que não sabem evitar o grito e tiram à sorte um deles para isolar o som medonho dos demais, assim contrafeitos. Suam em barda, o suor inteiro emaranhado nos poros das roupas, e os rostos estão seráficos como se nada houvesse de convincente na sua periferia.

Do esconderijo ouve-se um murmurar contínuo. Não se percebe se é uma prece remoinhada ou um lamento verossímil. Podiam organizar-se caçadas que as vozes lúgubres não seriam inventariadas. Que desistissem das intenções de dizimação dessas vozes guturais. Por mais que fossem as lágrimas, talvez transfiguradas em suor, não seria possível admitir os rostos e os corpos dessas vozes a concurso. 

Os espantalhos não se acotovelam à toa. Fingem que são matéria inerte, morta. Como muitos vivos não passam de vivos-mortos. Ou mortos antes do tempo, sem o saberem. Deles não se espera nada. Nem um sudário de onde bolçam os remédios que fortificam os corpos contra os contratempos desassisados. 

Deles não se espera a não ser um nada. 

6.12.21

Despenhamento perpendicular

The White Stripes, “Screwdriver” (Live), in https://www.youtube.com/watch?v=kjC8zKByvls

Todas as preces enfeitadas no relógio que está sempre atrasado. Como se fosse uma ilha perene e todos fossem a água que o cerca. Não tenciona ser exemplo. Não adormece convencido da benevolência do mundo nem da vingança dos justos. A matéria compõe-se de palavras que se agigantam contra o silêncio. Ainda ninguém o advertiu que o silêncio devia ser banido.

Na balsa onde se serve a pele experimentada, titubeiam os atores que subiram a palco. Esclareça-se o estatuto: foram todos convidados e não havia intrusos. As palavras amontoavam-se num indisfarçável cortejo de loucas tágides, como se esperassem que amanhã fosse o dia vulcão. Mas depressa se instituiu o repouso quando o sono derrotou a alegoria dos bacantes. Não havia vinho que fosse excessivo. Todos sentiam um levitar incansável. Se lhes dissessem que estavam na posse de asas, acreditavam. Talvez fosse a altura de procurarem o despenhamento. Mas faltava um precipício. A planície era o palco. Agora, todos falavam em alemão. Mas não se entendiam mutuamente. O sonho estava a uns milímetros de se tornar um pesadelo. Ninguém transigiu. Continuavam a improvisar as tiradas de um enredo que se escrevia à medida da latência dos relógios que ornamentavam a sala. 

Alguém perguntou: “o que são vinte e três horas?” Nada, a título de resposta. Não se soube se não havia resposta, ou se ninguém se importou com a interrogação. As pessoas que subiram a palco pareciam silhuetas errantes, como se fossem apenas o desenho dos seus limites, sem conteúdo. Ora se atropelavam, ora atingiam o auge da inércia quando estacionavam na bordadura do palco, olhando enigmaticamente como se a audiência fosse o horizonte. 

Talvez o horizonte fossem os olhos situados na audiência e os atores procurassem um porto de abrigo que os retirasse da antessala do precipício. Não sabiam, num invisível movimento rotativo que segredava o paradoxo que os alojava. Aqueles olhos eram arneses que os impediam de um salto no vazio. Não sabiam, mas um golpe de vento sussurrava: não tinham nada a ganhar com o despenhamento perpendicular. 

3.12.21

Quando o sol nasce não é para todos

Michael Kiwanuka, “Beautiful Life”, in https://www.youtube.com/watch?v=F2PltPL8olI

Contra a teoria dominante: não nasce para todos, o sol. Considere-se a hipótese do sol que se levanta no extremo asiático. Demora a chegar ao ocidente. As pessoas que vivem no ocidente estão mergulhadas na penumbra enquanto os habitantes do extremo asiático são acordados pelos iniciais raios de sol. No extremo ocidental da América ainda há quem veja uma ténue manifestação do sol antes da sua partida, e já ele se prepara para dar as boas-vindas a um novo dia no extremo oriente.

Mas mesmo no mesmo lugar, o sol que nasce não é para todos. Considere-se a hipótese de um boémio que foi pela noite dentro e deitou-se a faltar pouco para o despontar do sol. Os que acordam cedo são as primeiras testemunhas do sol que inaugura o dia, enquanto os estroinas estão no primeiro sono. Ou alguém que trabalha por turnos e fez o turno noturno: no Inverno, quando o sol é mais preguiçoso e se levanta mais tarde, não chegam a espreitar os inaugurais raios de sol quando saem do trabalho.

O sol que nasce não é para todos quando eles vivem em lugares próximos. Considere-se a hipótese da faixa litoral, banhada pelo mar e exposta aos maus humores de um microclima que espalha nevoeiros que se prolongam pela manhã fora. Meia dúzia de quilómetros para o interior, o sol irradia toda a sua pujança. Os habitantes da faixa litoral, se considerarem que o nevoeiro é matéria-prima de melancolia, sentir-se-ão discriminados pelos humores voláteis do microclima do sítio em que vivem. Estão em desvantagem em relação aos semelhantes que vivem meia dúzia de quilómetros para o interior, que são ungidos pelas propriedades heurísticas de um sol matinal.

O sol não nasce para todos. Considerem-se as hipóteses dos privilégios de casta, da pertença a certas agremiações que premeiam a fidelidade com sinecuras várias, dos que têm acesso a informação privilegiada e dela tiram partido, dos que escapam entre os pingos da chuva com a bengala da corrupção. Todos têm uma aproximação privilegiada aos primeiros raios de sol, aqueles que mais importam. Se o sol fosse igual para todos, alguns deles teriam de ver o sol com a peneira do gradeamento de penitenciárias celas. Não sendo o caso, a não ser fortuito, fica confirmado que o sol não nasce para todos. 

2.12.21

Bluff

Felt, “Primitve Painters” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=MwyZqjMiGXI

I

Dantes era a melena negligentemente pendida sobre metade do rosto. Agora tira partido do açaime imperativo a propósito da peste – um pretexto. Nunca deixou de fazer bluff de si mesmo. Aos que o acusassem de fingimento, respondia que a fronteira entre o bluff e o fingimento não está no campo de visão dos olhos habituais. Cabia aos outros adivinhar. Ele não respondia pelas profecias assim determinadas. 

II

O feirante saltava freneticamente de um lado para o outro, a voz roufenha a convencer os transeuntes que a mercadoria é de primeira água. Os preços anunciados eram sempre a inflação de si mesmos. Só os desprevenidos, e os distraídos, não sabiam que os preços das mercadorias entoados pelo feirante acabavam sempre a descer a ladeira. Muitos eram apanhados na armadilha da distração, ou do desconhecimento. Levavam para casa mercadoria ao preço de bluff.

III

O estudante sabia mais de literatura. Sabia muito pouco dos estudos. Ausente do mundo – “era da poesia avidamente consumida” – não lhe era dado a perceber que o tirocínio estava mal destinado. Todavia, insistia. Servia-se da proficiência na escrita para ludibriar a maioria dos lentes, impressionados com tamanha facúndia. Só havia um lente que não ia em cantorias e disse, terminantemente, que ou sabia da poda ou se era para fazer o bluff da escrita que fosse bater à porta de uma editora.

IV

Ela caiu em si: não era aquele homem que queria por companhia. Não sabia explicar. Sentia-o. Não havia um terceiro metido ao caminho. Não estava no precipício de uma crise existencial, nem fora acometida por uma epifania que obrigasse a mudar de vida. Era uma perplexidade que a assaltava. Acabou por deixar estar tudo como estava, a vida como conhecia meticulosamente intacta. Pressentiu que era um bluff a contaminar o sangue que decanta os sentimentos.

V

O empresário sabia que não podia mostrar filantropia. Fica bem aos olhos da sociedade – julga a maioria desacautelada; mas as intenções são vítimas de duplos julgamentos. Se exibisse o mecenato, logo diriam os invejosos, e os fracos de intenções, que uma segunda intencionalidade se escondia. Ele seria julgado como filantropo por saber que assim terçava o caminho da absolvição. E só podemos ser generosos – deseduca-se na sociedade – se formos genuínos, sem um qualquer proveito à espera. E a sociedade fazia de conta que acreditava no preceituado.

1.12.21

Os russos não bebem vodka e outras falácias que tais

Ólafur Arnalds, “The Final Chapter”, in https://www.youtube.com/watch?v=rUL04sHIVhI

Os sinos repicam e não é por haver finados. Repicam como uma homenagem ao avesso à desonestidade intelectual. Alguém disse: “eu não gosto de discussões, porque há muitas falácias a contaminá-las à partida.” Se as pedras se retirassem e ficasse apenas o estuque, tudo seria candidato à próxima ruína. Em vez disso, aperaltados trovadores da retórica emprestam-se ao prémio da estultícia dominante. Do gongórico matraquear da palavra não se extrai o merecimento de causa, tantas vezes os argumentos se enredam em solilóquios que são a melhor maquilhagem para a honestidade em desuso.

Talvez seja melhor evitar as discussões. Sobretudo com aqueles que estão fadados para as vencer – como se entrar numa discussão fosse o mote para a levar de vencida. Tal seja o arquétipo, é condição prévia de um festival de distorcidos pressupostos. Quantas não são as ocasiões em que a discussão é previamente formatada por pressupostos alfaiate, aqueles que se preconcebem com o propósito não escondido de conduzir a discussão até ao pessoal triunfo? Como se tivéssemos de acreditar que os russos não bebem vodka como os árabes não ingerem carne de porco, só porque a imagem dos russos a recusarem vodka é condição de base para provar que eles são gordos (regra geral) por terem deixado de consumir vodka. A verificação empírica desmentiria o argumento e, acima de tudo, o pressuposto. Mas a Rússia continua a ser um lugar longínquo, não escrutinado pela observação direta do observador. É quando a mentira ganha terreno fértil.

Se somos pássaros, ao menos que nos seja concedida a graça de voarmos desagrilhoados, como é típico dos pássaros que não vivem em cativeiro. Os que se encerram em propositadas falácias querem engaiolar os outros que deles divergem. Não percebem que mostram, e antes dos demais, que são aves privadas de liberdade. A adulteração dos termos de uma discussão “só porque” é preciso levá-la de vencido é como passar um cheque em branco aos argumentos que se esgrimem sob a batuta do aleatório. Os seus fautores são pássaros enjaulados, reféns da sua própria indigência.

É mais importante ensinar nas escolas como devem os petizes proceder para não capitular perante as falácias que os seduzem. Mais importante do que a continuação da propaganda serodiamente nacionalista que narra as proezas de uma gesta inteira que, na fórmula oficial, deu a conhecer novos mundos ao mundo. Para que a História não seja um pedaço de falácia.