10.12.21

Do sal que tiras das feridas (short stories #369)

The Durutti Column, “Little Mercy (Domo Arigato)” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=1XQCMqcas14

          Não será o contencioso ferido de beligerância que depura o sono dos seus pesadelos. À medida do tempo, uma batuta meticulosa arranha as portas que permanecem fechadas. Diz-se que ninguém lamenta o que não soube ser dor. Não se sabe se é verídico o presságio: há dores que vêm à superfície com a dilação permitida pela hibernação. Não importa. As cicatrizes são um mapa do corpo. Dizem muito sobre esse corpo. Não é critério avisado atirar sal para cima das cicatrizes, correndo o risco de as reabrir. À carne viva não apraz o sal cintado. A erubescência que aviva a carne bolça os demónios pretéritos – os que estiveram na origem das feridas assim fundeadas. A angústia metódica não é o resultado que se extrai dos ventos dominantes. Ecoam as vozes emblemáticas no ocaso onde as portas encerradas se soterram. O porvir pode ser feito de derrocadas, se assim quiseres. A vontade é o domínio que te pertence. A menos que não queiras esconjurar os sobressaltos, não tens de te entregar, submisso, ao altar onde se sublima a nostalgia. Pois a nostalgia é essa ferida sempre aberta, purulenta, e nunca dás conta das dores silenciosas que ela provoca. Pudessem as bocas sussurrar as palavras deleitosas. Pudessem, mesmo que em delito, rasgar as sílabas por gastarem as estrofes encadeiradas. Se o tempo fosse feito desta quimera, serias a coreografia dos loucos que se esquecem do lugar a que outros dizem pertencer. Serias, apenas, a tutoria de ti mesmo. Não um esboço; o sangue inteiro por dentro das veias em constante combustão, o segredo para evitar a capitulação perante a letargia. Nessa altura, saberias tirar o sal que teimosamente acama nas feridas. Deixá-las-ias respirar o ar que é a praça-forte das tempestades. Porque precisas de saber do paradeiro do sismo que te deixa no lugar. 

Sem comentários: