22.12.21

Manifesto anticarros funerários

The Smiths, “There Is a Light That Never Goes Out” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=icXQxumuHAE

Fugir dos carros funerários como se fôssemos supersticiosos. Se calhar, somos supersticiosos. E fugimos dos carros funerários por não querermos o mesmo fado dos seus passageiros. É o medo da morte.

Como pode, a menos que seja estultícia, alguém assinar um manifesto contra os carros funerários? Por exemplo: a irritação provocada pelas obras diurnas nas estradas, levando a bílis a interrogar por que não são feitas as obras quando as pessoas estão a dormir e quase não há trânsito nas estradas? É um assomo de egoísmo, pois ninguém perguntará se é aceitável exigir que os operários são obrigados a laborar quando deviam estar a dormir.

Eis a analogia com os carros funerários: os féretros podiam ser deslocados durante a noite, usando um raciocínio similar ao da necessidade de obras noturnas quando as estradas delas precisem. Merece um cadáver tamanho tratamento clandestino? Não há de merecer ser deslocado à luz do dia, como se a circulação lhe fosse vedada por já não pertencer aos vivos? Ou: deviam ser remetidos para as viagens noturnas para não incomodarem os viventes que se agarram à vida sobretudo quando sentem o odor da morte a adejar como um vulto episódico?

A morte é o fermento do medo. O medo é legítimo para quem não resolveu as pendências com a vida (ou será com a morte?) e despreza-a como representação de uma injustiça que os vitima. Um carro funerário é uma exibição de morte. A exibição do destino fixo que se inscreve na cartografia que habitamos. É uma estultícia pretender proibir a circulação de carros funerários; os mortos têm direito a um derradeiro momento de dignidade. Mas a dignidade da vida legitima a ativação da superstição ao mudar de faixa de rodagem para não ficar na retaguarda de um carro funerário. 

Na contradição de direitos, que se sobreponha o direito do vivo porque esse conta para os vivos, ao contrário do passageiro do carro funerário. O morto não fica ofendido quando os vivos fogem do carro funerários.

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