20.12.21

Do pano puído

Low, “Hey”, in https://www.youtube.com/watch?v=uLYmrHBzMqI

É o medo que açambarca o sangue, tingindo-o de frio. Não se sabe que vultos adejam lá fora. Que podem esses vultos? A rua intimida. Convida a ficar em casa, como se, de repente, deixássemos de ser gregários. Parece que o mundo inteiro se tornou um anátema. Feito de um ecossistema que não pertence à nossa pele.

Pode ser que seja apenas um pesadelo. Os chacais cercam o corpo como se ele já não passasse de uma ilha. O rosnar dos mastins eleva-se mais depressa do que o sol nascente e invade os ouvidos com um lampejo de medo. Não se sabe quem personificam os chacais. Oxalá fossem apenas uma metáfora, o incindível ornamento que retrata as dores de um mundo que parece um corpo estranho. E, todavia, o sobressalto entranha-se à medida que os minutos avançam contra o temor. 

Parece que somos quase todos párias. Só uma oligarquia escapa – os que tomam por sua a fazenda avalizada por um mundo que foi feito para ser desigual. Os apóstolos da igualdade foram silenciados, ou derrotados perante o desmentido da realidade. Os fautores da propaganda enaltecem este lugar em que vivemos: somos felizardos, porque o lugar que nos acolhe é um paraíso. O choque frontal com o cenário que pisamos é de outra narrativa. A prática não quadra com a teoria. A teoria está a soldo de uma oligarquia que tenciona anestesiar perenemente os demais.

Mas estes não são uma massa inerte. Foi-lhes dada alguma instrução e, os que se embeberam num espírito crítico, usam a sua própria lente, que há muito dissidiu da lente oficial que fantasia um paraíso. Não passa de um paraíso prometido, ou de um paraíso perdido, consoante o grau de deceção que sobressalte os observadores atentos. Os outros, sitiados pela letargia a que foram convidados pela oligarquia, não têm opinião formada. Não chegam a perceber que passam um cheque em branco aos procuradores do sistema instituído. São cúmplices da dilação do paraíso prometido, que se eterniza como promessa não ajuramentada.

Assim assentamos num pano puído, disfarçado de lantejoulas que ajudam a compor a farsa. Não é um pesadelo, ou sequer um inocente sonho. É o pano em que assentamos.

Sem comentários: