Caía a infâmia sobre os ombros cansados. Sabia porquê – não era em inocência que temperava a angústia. Podia ser que dele dissessem que era persona non grata. Não mudaria. Aquele era o eu que sabia ser. O mundo que se habitasse a ser povoado por esse eu.
Os dias eram consecutivamente amenos. O sol amedrontado não mostrava o dezembro que estava. Muitos, não como ele, conviviam alegremente com a permanência de dias soalheiros. Mas ele era a persona non grata, o provocador que arremetia pelos labirintos onde se terçava a rebeldia. Queria um dezembro à moda antiga. Um dezembro que já tivesse o aroma do Inverno. Sabia que ainda não era Inverno, que estava por dias. Mas as estações são cada vez mais apeadeiros onde repousam as convenções. E estas limitam-se a convocar a artificialidade.
Naquela manhã, o céu acordou dezembro. Dezembro como conhecia dezembro. Não fosse pelos olhos marejados pelo vento invasor, diria que a manhã recebera um elevado patrocínio. (O pensamento empurrou-o a dizer que o elevado patrocínio fora conferido por uma divindade, mas o ateísmo cimentado castrou a frase antes do seu óbvio termo.) Antes que fosse tarde, as tarefas que estavam na agenda. Assim ficava com o resto do tempo livre para tirar partido de um céu dezembradamente plúmbeo.
Foi uma das vítimas da tempestade que tomou conta da cidade. As pessoas que tinham os seus afazeres foram as outras vítimas, a roupa ensopada e os rastos dos vestígios de guarda-chuvas estilhaçados pelo vento furibundo visíveis pelas ruas fora. Ele não se considerava uma vítima deste tempo – em recusando-se a adjetivá-lo como “mau”, como mandam as convenções estabelecidas e a sua artificalidade. Na confeitaria onde parou para tomar um café, disparou em alta voz, enquanto pagava o consumido:
- Bom dia. Tenha um bom dia como bom é o dia que se pôs.
A funcionária, uma mulher de meia-idade já sitiada pela obesidade, enfureceu-se e respondeu com a má moeda dos fígados insultados:
- O dia está bom só para quem for louco. Louco, ou má pessoa. É o seu caso?
Deixou a mulher sem resposta. Os loucos, e as más pessoas, não se aferem só porque o céu respeitou a tradição e dezembrou. Mas se fosse preciso, não se importava de carregar às costas a etiqueta de persona non grata. Mesmo sabendo, por julgamento em causa própria, que um céu a dezembrar é compatível com uma persona grata.
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