I
Dantes era a melena negligentemente pendida sobre metade do rosto. Agora tira partido do açaime imperativo a propósito da peste – um pretexto. Nunca deixou de fazer bluff de si mesmo. Aos que o acusassem de fingimento, respondia que a fronteira entre o bluff e o fingimento não está no campo de visão dos olhos habituais. Cabia aos outros adivinhar. Ele não respondia pelas profecias assim determinadas.
II
O feirante saltava freneticamente de um lado para o outro, a voz roufenha a convencer os transeuntes que a mercadoria é de primeira água. Os preços anunciados eram sempre a inflação de si mesmos. Só os desprevenidos, e os distraídos, não sabiam que os preços das mercadorias entoados pelo feirante acabavam sempre a descer a ladeira. Muitos eram apanhados na armadilha da distração, ou do desconhecimento. Levavam para casa mercadoria ao preço de bluff.
III
O estudante sabia mais de literatura. Sabia muito pouco dos estudos. Ausente do mundo – “era da poesia avidamente consumida” – não lhe era dado a perceber que o tirocínio estava mal destinado. Todavia, insistia. Servia-se da proficiência na escrita para ludibriar a maioria dos lentes, impressionados com tamanha facúndia. Só havia um lente que não ia em cantorias e disse, terminantemente, que ou sabia da poda ou se era para fazer o bluff da escrita que fosse bater à porta de uma editora.
IV
Ela caiu em si: não era aquele homem que queria por companhia. Não sabia explicar. Sentia-o. Não havia um terceiro metido ao caminho. Não estava no precipício de uma crise existencial, nem fora acometida por uma epifania que obrigasse a mudar de vida. Era uma perplexidade que a assaltava. Acabou por deixar estar tudo como estava, a vida como conhecia meticulosamente intacta. Pressentiu que era um bluff a contaminar o sangue que decanta os sentimentos.
V
O empresário sabia que não podia mostrar filantropia. Fica bem aos olhos da sociedade – julga a maioria desacautelada; mas as intenções são vítimas de duplos julgamentos. Se exibisse o mecenato, logo diriam os invejosos, e os fracos de intenções, que uma segunda intencionalidade se escondia. Ele seria julgado como filantropo por saber que assim terçava o caminho da absolvição. E só podemos ser generosos – deseduca-se na sociedade – se formos genuínos, sem um qualquer proveito à espera. E a sociedade fazia de conta que acreditava no preceituado.
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