Os ecos do outono não desautorizam a saída à rua. Quando chovia e a maior parte das pessoas se escondia da chuva, ele errava pelas ruas. A chuva não o amedrontava. Andava sem rumo, tempo e tempo com a chuva a ensopar as roupas e as partes do corpo que não estavam protegidas. Não suscitava curiosidade dos demais. Primeiro, eram poucos os que, àquela hora e sob os efeitos da intempérie, arriscavam sair à rua. Nesses dias tempestuosos, era como se grande parte das pessoas se convencesse da quarentena de outrora. Segundo, as pessoas eram indiferentes umas às outras, como se uma dose de misantropia as tivesse invadido pelas veias recetivas. Pelos seus cálculos, a chuva ia demorar-se. Controlava as previsões através da aplicação no telemóvel, seguindo a trajetória esperada que era função do cálculo de muitas variáveis. Não vinha mal ao mundo se a roupa estava ensopada. Depois de despida, seguia para a máquina de lavar. Quanto a ele, os cabelos molhados, dos quais escorriam abundante gotas do que fora chuva, patenteavam a demorada marcha sob os auspícios da chuva. Não fosse a indiferença dos poucos que saíam à rua, perguntar-lhe-iam se não temia uma gripe pela destemperança de desafiar a chuva. Ele, com a calma que lhe era reconhecida, diria que era à prova de gripes por efeito de aprendizagem das muitas deambulações sob a égide da chuva. Os demais, se não o votassem à indiferença que é a medalha que reciprocamente se atribuem, aprenderiam que não somos vítimas dos males se deles não tivermos medo. O homem da chuva era disso o sinal vivo. Foi o seu tirocínio desapalavrado do medo da chuva que o imunizou contra os achaques outonais e invernais. Lamentavelmente, a imunização não funcionava durante a Primavera e o Verão.
30.12.21
O homem da chuva (short stories #371)
Yard Act, “Fixer Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=rPIk27ve3uo
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