Vamos virar os relógios do avesso? Mas só consoante as preferências das pessoas. Aos boémios, dir-se-ia que a noite virou dia. Teriam de conviver com a boémia sem ser tingida pelo sortilégio noturno, como se as luzes escassas, aqui e ali temperadas por néones que emprestam esplendor à noite, deixassem de ser o único condimento que apimenta o folguedo. Fá-la-iam, à festança, durante o dia. Sem incomodarem o sono dos que, não sendo noctívagos, usam a noite para dormir, recuperando do esforço de um dia de trabalho.
Para os noctívagos serem boémios à luz do dia, trabalhariam de noite. Dormiriam quando lhes apetecesse, regulando o relógio biológico pela bitola filosófica que ensina que nos devemos colocar no lugar do outro antes de os atropelarmos. Assim sendo, os boémios fariam boémia quando os não boémios não estão a dormir. O ruído tonitruante não incomodaria vivalma. Saíam todos a ganhar – incluindo os estabelecimentos da especialidade, que deixariam de se chamar “noturnos” e seriam rebatizados, eventualmente, como estabelecimentos da boémia: podiam estar abertos vinte e quatro horas por dia.
A solução concentraria em si uma data de vantagens. A começar pela possibilidade de as empresas também trabalharem à noite, alargando os horários de trabalho. Certos quadrantes ideológicos não estariam pelos ajustes, vertendo os seus sonoros protestos. Assim como assim, seriam aplacados os protestos quando admitissem que a solução seria a seu favor. Pois ela não traduziria uma capitulação aos abomináveis capitalistas, mas uma concessão ao hedonismo.
Em segundo lugar, evitar-se-ia uma sublevação popular dos que mal conseguem dormir por causa da boémia que atravessa a noite sem respeito pelo seu sono. Poderiam ser motivadas, estas vítimas, a responder na mesma moeda: durante as manhãs e início de tardes, concentrados nas imediações de janelas com persianas corridas, entoariam alto os seus protestos contra o sono dos que boicotaram o seu sono anterior. Evitar-se-ia que os boémios e os não boémios se guerreassem. Vem nos manuais: a paz é preferível ao conflito.
Em terceiro lugar, seria feita a vontade da deputada Joacine e dos demais sacerdotes da novilíngua que censura a conotação pejorativa de certas palavras, por prolongarem o chamado “racismo sistémico”. A noite podia ser de dia, fundindo-se os dois num só e esbatendo os critérios abusivos que imputam a claridade ao dia e a escuridão à noite (como se a claridade ao dia e a escuridão da noite fossem uma expressão do racismo encapado).
E, no final, estaríamos a caminho de uma perfeição pérfida.
Sem comentários:
Enviar um comentário