9.12.21

Mandatário

Interpol, “Stella Was a Driver”, in https://www.youtube.com/watch?v=Bcjmll8D0Ak

Uma voz terceira. Era a voz sua, a falar a de outro. Dantes chamavam-lhe porta-voz. Como se fosse o portador de uma voz outra, através da sua manifestada. Não se importava com a terminologia. Era a sua função. Dar voz às vozes terceiras que o nomeavam mandatário das suas. Fosse o nome que lhe dessem.

Quem estivesse de fora diria que tinha um problema de identidade, pois a sua voz era sempre o veículo de transmissão de uma voz a ele alheia. A voz era sua ser o ser, titulada nos vocábulos dos outros. Nunca lhe perguntaram se não estava cansado que a sua voz fosse usada para dar voz às outras vozes. Em melhor formulação: se não estava em débito com a sua voz, a voz própria, sendo provável que nunca deixou de se guiar pelos seus próprios interesses.

Fugia à demanda. No máximo, ensaiava uma atabalhoada resposta. Não estava habituado a que a sua voz fosse o espelho da voz própria. Ocultava o que fervia por dentro das veias. A sua voz, de tantas vezes mandatada para ser portadora das vozes terceiras, omitia-se nos interstícios das solicitações dos que procuravam os seus serviços. Não deixava de existir, a voz própria. Mas disfarçava-a numa voz a que os outros não estavam habituados. Não era por isso uma voz menor, a voz própria.

Era como se fosse um ventríloquo, as várias vozes adaptadas às circunstâncias. No inventário das vozes, guardava, quase em segredo, uma só para si. Era a voz menos ouvida. Havia quem não o conhecesse quando envergava esta voz. As pessoas estavam habituadas ao mandatário. Não estavam habituadas à pessoa que corporizava o mandatário. O palimpsesto de vozes garantia o anonimato quando se servia da voz que lhe era própria.

O lugar onde tinha o inventário das vozes era como se fosse um deserto de identidade, sem lugar no mapa. A fartura de ser mandatário era ser um apátrida de voz, pois as vozes inventariadas quadravam apenas com um rosto público. E ele não se identificava com esse rosto público quando se dedicava a ser ele próprio, no auge da sua autonomia em que se desprendia de mandatário.

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