13.12.21

Os mortos que não morrem (short stories #370)

Ólafur Arnalds, “Not Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=IBUYLedYods

          Ah, as garras malditas que não saem de cima da pele e aderem à alma, tornando-a viscosa, uma ostentação de desexemplo. As horas andam devagar. Os relógios já são apenas uma baça lembrança das memórias de outrora, quando tudo parecia viver aprisionado numa fotografia de fingimento. Os lugares são indistintas geografias sem mapa. E, todavia, era quando os dias corriam no seu vagar e tudo parecia ser um encómio da felicidade. Mas essa palavra não segredam os órfãos. Deles não se faz História, pois deles a história vive na sombra da indiferença. Não possuam as mãos aqueles vestígios de cobre arrancados às árvores outonais. Demandam-nos nas cumeadas que hão de ser o chão dos nevoeiros. Agora é a pele que se agarra à alma, tornando-se inconfundíveis. Dantes, era o salvo-conduto do fingimento necessário: a pele fazia de conta que aquela não era a sua alma. Os rostos passavam na esquadria da manhã e não tinham varandas onde assentar. Eram rostos inválidos, como se as demais pessoas não contassem. Eram mortos que não morrem – ou era ele, peixe fora de água, a fugir às responsabilidades devolvidas pelas convenções; ele, irremediavelmente moribundo sem saber, ou sabendo, sem o reconhecer. Atirava o opróbrio da morte para os outros. E não intuía que era o melhor tributo à vida. Talvez não a sua, que essa era a perene cobiça das vidas dos outros – das vidas que nunca chegava a respirar. Não tinha remédio desta apátrida condição que o condenava à solidão. Podia jurar que não existe maior miséria. Mas os outros não queriam saber da sua miséria. Ou da sua solidão. Pois por ele passavam com a mesma indiferença a que aos outros votava. Não os podia condenar. Já passou o tempo, na voragem da juventude, que se convencera ser árvore centrípeta. Agora, por fim, parecia um daqueles mortos que não morrem.

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