3.12.21

Quando o sol nasce não é para todos

Michael Kiwanuka, “Beautiful Life”, in https://www.youtube.com/watch?v=F2PltPL8olI

Contra a teoria dominante: não nasce para todos, o sol. Considere-se a hipótese do sol que se levanta no extremo asiático. Demora a chegar ao ocidente. As pessoas que vivem no ocidente estão mergulhadas na penumbra enquanto os habitantes do extremo asiático são acordados pelos iniciais raios de sol. No extremo ocidental da América ainda há quem veja uma ténue manifestação do sol antes da sua partida, e já ele se prepara para dar as boas-vindas a um novo dia no extremo oriente.

Mas mesmo no mesmo lugar, o sol que nasce não é para todos. Considere-se a hipótese de um boémio que foi pela noite dentro e deitou-se a faltar pouco para o despontar do sol. Os que acordam cedo são as primeiras testemunhas do sol que inaugura o dia, enquanto os estroinas estão no primeiro sono. Ou alguém que trabalha por turnos e fez o turno noturno: no Inverno, quando o sol é mais preguiçoso e se levanta mais tarde, não chegam a espreitar os inaugurais raios de sol quando saem do trabalho.

O sol que nasce não é para todos quando eles vivem em lugares próximos. Considere-se a hipótese da faixa litoral, banhada pelo mar e exposta aos maus humores de um microclima que espalha nevoeiros que se prolongam pela manhã fora. Meia dúzia de quilómetros para o interior, o sol irradia toda a sua pujança. Os habitantes da faixa litoral, se considerarem que o nevoeiro é matéria-prima de melancolia, sentir-se-ão discriminados pelos humores voláteis do microclima do sítio em que vivem. Estão em desvantagem em relação aos semelhantes que vivem meia dúzia de quilómetros para o interior, que são ungidos pelas propriedades heurísticas de um sol matinal.

O sol não nasce para todos. Considerem-se as hipóteses dos privilégios de casta, da pertença a certas agremiações que premeiam a fidelidade com sinecuras várias, dos que têm acesso a informação privilegiada e dela tiram partido, dos que escapam entre os pingos da chuva com a bengala da corrupção. Todos têm uma aproximação privilegiada aos primeiros raios de sol, aqueles que mais importam. Se o sol fosse igual para todos, alguns deles teriam de ver o sol com a peneira do gradeamento de penitenciárias celas. Não sendo o caso, a não ser fortuito, fica confirmado que o sol não nasce para todos. 

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