4.5.22

A feitiçaria era má moeda

 

Sleaford Mods ft. Amy Taylor, “Nudge It” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=N5f1Bweak38

O sobrenatural tirava-o do sério. Ou melhor: as pessoas que se entregavam nos braços lívidos do sobrenatural tiravam-no do sério. Aquelas pessoas contrariadas pelo infortúnio que ousa atravessar-se no caminho e consideram que uma mezinhas a preceito esconjuram a temporada agoirenta. Como se ostentar um trevo de quatro folhas à janela não só espantasse os azares, como constituísse o chamamento do seu oposto. 

E as divindades, numa miríade de abastança (pois os padecimentos à margem da vontade dos por eles acometidos manam de uma fonte copiosa), estariam de atalaia para corrigir os malefícios que demónios desalmados provocam nos inocentes. E como tudo parece acontecer no palco do sobrenatural, ninguém se interroga se não há um laivo de justiça divina, ou um seu sucedâneo, e os putativos inocentes flagelados por uma desdita não são tão inocentes como proclamam.

Para piorar o diagnóstico do sobrenatural, amiúde os inocentes que são trazidos para o papel de vítimas são animais. Ele é a galinha preta sacrificada em atos de intensa bruxaria, as pernas de rã que parecem ter culpa do coaxar bucólico dos anfíbios, os rinocerontes sacrificados porque o corno dá origem a uma substância afrodisíaca que compensa as fraquezas de desempenho de uns quantos, os gatos pretos que são perseguidos por serem uma convocatória do revés. E as pessoas, despojadas de um módico de razão, acreditam. Acreditam em algo que julgam superior a elas, sem perquirirem as causas de uma feitiçaria possivelmente afugentar os demónios que venham a povoar o horizonte. 

Se houvesse mercado para os estados de alma e seus soporíferos, a feitiçaria estaria inventariada no lado da má moeda. A moeda pútrida, feita de uma liga metálica que aprisiona a vontade dos que nela gravitam, dissolvendo a sua vontade, expondo-os aos fraudulentos sortilégios que os inventores dessas feitiçarias arrematam do acaso.

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