23.5.22

Bilhete de desidentidade (o bilhete premiado)

The Smile, “The Opposite”, in https://www.youtube.com/watch?v=72z6FJsVcbs

O espelho estava adulterado? Pois se não reconhecia o rosto que o espelho devolvia, a causa das coisas seria a adulteração do espelho, que o rosto observado é conhecido sem a ajuda do espelho. Ele há fotografias, excertos de filmagens, a recordatória geral que está no cais das memórias. Que não se atraiçoam dessa forma. O espelho adulterado era a hipótese restante.

E se o espelho continuasse a repetição de uma fidedigna imagem? Ou: e se a imagem reproduzida pelo espelho fosse fidedigna, a cópia exata do rosto que encontrou apeadeiro no espelho? Podemos ser titulares de um rosto que não reconhecemos? Continuamos a ser quem somos se o rosto usado pelo espelho não é o rosto habitual?

Talvez fosse o emergir da desidentidade. Como se as mãos mergulhassem na fundura da terra e viessem à superfície encardidas com todos os despojos legados ao magma sem memória, o magma que desata a vergonha inconfessável. Cada um não seria o que de si pensa ser, mas um outro alguém, feito de matéria diferente da que estava emoldurada. Nessa altura, o bilhete de identidade era retirado das profundezas. Era desafiado a mostrar se era uma reprodução exata do titular. O diálogo entre bilhete de identidade e titular do mesmo não ficaria lavrado em ata, nem sequer devia ser incluído nos contrafortes da memória. 

A dor às vezes pungente, à medida que se sucediam perguntas e ensaios de resposta, desfazia os conceitos preordenados. Todos os parafusos teriam de ser desapertados e depois inventariados nos despojos. A empreitada sucessiva era voltar a colocá-los no lugar. Não exatamente no lugar de onde foram desapertados, mas num novo lugar que o engenheiro das coisas, o alter ego da identidade desafiada, encontrasse a preceito. 

No exercício demorado, as respostas não tinham de corresponder às interrogações. As respostas emanciparam-se das interrogações e fizeram o seu caminho próprio. Voltando a desenhar um módico de identidade numa folha de papel à espera de perder a inocência. Até que do bilhete de identidade sobrasse apenas um esqueleto, os ossos frágeis pedindo nova e ilógica carne. Pois que da identidade anterior, desfeita de cima a baixo, as pernas tremeram de tanto se perderem de conceitos. A identidade adquirida não prestava. Era preciso outra identidade, uma que medrasse da rejeição da que já fora incluída nos pertences. 

Ou então, uma identidade reinventada, só para levar vencimento a desidentidade consecutiva. Pois de freios não pode ser feito o Homem.

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