16.5.22

Isso era no tempo em que jornalistas especiosos inventaram o jogo de palavras “traumatismo ucraniano”

Wolf Alice, “Don’t Delete the Kisses”, in https://www.youtube.com/watch?v=WqxE-zppu30

O prato opulento chega à mesa e os olhos glutões aperaltam-se, ateando a gula que se apruma. Se fossem neófitos, os amesendantes saberiam, por experiência passada, do logro de que iam ser vítimas – outra vez. E toda aquela opulência, representada pela abastança de víveres transformados pelos dedos da gorda cozinheira que espreitou pela escotilha da cozinha, era excessiva, como é próprio do que é opulento. 

A refeição terminou sem a sensação de ter sido opípara. Sobrou um estômago protuberante, um enjoo a tomar conta das horas supervenientes. Não era novidade. Escalas impróprias em ocasiões pretéritas deram o mote para que as sinapses soubessem estabelecer a correspondência entre o “enfarta-burros” esperado e a aguardada indisposição incidental. Nunca se perguntaram, os confrades, se a experiência havida não devia servir como isso mesmo, experiência, para as devidas ilações serem projetadas no tempo vindouro.

Era um pouco como aqueles teimosos que não se munem de guarda-chuva depois de recolherem a informação meteorológica sobre a probabilidade de precipitação. Alguns agarram-se à autenticidade da justificação: eles são tão distraídos que habitualmente perdem o paradeiro do guarda-chuva num qualquer lugar que não conseguem mapear. Preferem andar à chuva. Se fossem nórdicos, andar à chuva não era uma contrariedade. Mas são latinos. E os latinos são muito flor-de-estufa quando andam à chuva sem o abrigo de um guarda-chuva. 

Os prosélitos da farta amesendação em restaurantes populares e os obstinados que são forçados a molhar a roupa quando têm de descer à rua sob o jugo da chuva convergem no mesmo arquétipo. São como aqueles jornalistas que se autoconsideram diletos utilizadores do idioma ao ponto de serem capazes de podar três metáforas inventivas enquanto o comum dos mortais ainda interioriza as palavras que deve usar para reagir a um acontecimento. Laboram na obviedade, farsantes do lugar-comum (como se o lugar-comum fosse o barómetro da sublime inteligência), jogadores de palavras sem terem a linhagem da criatividade literária. São aqueles que, um certo dia, adaptaram o traumatismo craniano, mudando-o para “traumatismo ucraniano”, porque o rapaz que marcou o golo da vitória era de ucraniana nacionalidade.

Ninguém lhes corrigiu o dislate: se os plumitivos amadores percebessem que o traumatismo foi causado à equipa adversária pelo ucraniano, saberiam que estavam a insinuar o contrário do que pretendiam noticiar. (A notícia fora dada como se o golo do atleta ucraniano, causador do traumatismo com o selo da sua nacionalidade, viesse ao regaço dos vitoriosos como beneplácito. Ora, um traumatismo só faz sentido porque alguém é sua vítima).

Se fosse agora, estou seguro de que os plumitivos dobravam a língua da malsã criatividade antes de usarem a expressão “traumatismo ucraniano”. 

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