6.5.22

José Maria cor-de-rosa não habitava na coerência e não se importava com isso

black midi, “John L”, in https://www.youtube.com/watch?v=GT0nSp8lUws 

José Maria sempre se teve como um garboso exemplar do sexo masculino. Um marialva de forte cepa – e não se escondia numa cortina de fumo só porque os tempos não estavam condizentes com a impopular condição marialva. Metia-lhe espécie que um macho pudesse vestir de cor-de-rosa. O seu pensamento nada labiríntico (era, aliás, de uma lhaneza desarmante) logo tratava de estabelecer as devidas correspondências: um homem que vista de cor-de-rosa só pode ser homossexual. 

A linearidade simplória do raciocínio de José Maria permitia saber que a homossexualidade habitava num logradouro. Era a forma mais diplomática de o José Maria admitir que os homossexuais são o produto de uma aberração da natureza. A natureza tinha as suas leis que não podiam ser contestadas, nem desafiadas, pelos apóstatas deste jusnaturalismo sem assinatura. 

(É duvidoso que José Maria saiba o que é o jusnaturalismo. Porém, podemos ser algo cujo significado desconhecemos.)

O próprio José Maria não se decidira sobre o que estava em causa com o opróbrio de másculos personagens vestidos de cor-de-rosa: não estava seguro que fosse o preconceito contra os homossexuais, porque o pensamento nada labiríntico os associava ao cor-de-rosa; ou se era apenas uma embirração estética, porque aprendeu, desde que se lembra de ser alguém, que o cor-de-rosa é usado pelas meninas, dando corpo ao seu comportamento eivado de dicotomias simplistas. Possivelmente, um másculo personagem perderia tais credenciais se fosse apanhado a vestir de cor-de-rosa.

Um dia, a agremiação desportiva da cidade onde José Maria vivia apresentou os equipamentos para a época seguinte. Uma das camisolas ostentava um cor-de-rosa garrido. José Maria, indefetível adepto da agremiação, e dela habitual seguidor acrítico, tratou de negar todos os anos anteriores e, em publicação numa rede social, levantou bem altos os polegares em sinal de subscrição da opção estética ao dar seguimento à fotografia da camisola vivamente cor-de-rosa da agremiação da sua preferência.

José Maria sabia que ninguém iria esquadrinhar o seu passado para o confrontar com a incoerência cromático-indumentária.

(Forma suavizada de admitir que pouca gente lhe dava importância, numa quase solidão sempre disfarçada pelas tentativas forçadas de socialização do José Maria.) 

Por isso, deu esta Putinice ao José Maria, que, num golpe de asa mortífero, apagou com celeridade todo o pretérito da sua vida para ser adorador de (certos) homens vestidos de cor-de-rosa. Sem, contudo, dar o flanco à sua orgulhosamente assumida heterossexualidade. Apenas se tratava de limpar do cadastro a descorrespondência entre o vestuário masculino e o cor-de-rosa.

Era o tanto que podia a cegueira do desporto favorito da coletividade. Depressa a coerência ia a banhos, ficando para lá de banho-maria, antes entregue aos favores de uma criogenia muito seletiva. José Maria não se importava. Outros figurões, muito mais importantes do que ele e com as responsabilidades de quem frequenta o espaço público, que confessassem se se mantiveram constantemente leais à coerência. Ele sabia que não e disso faria inventário, se fosse preciso para se defender.

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