30.5.22

Todos os trunfos

Arlo Parks, “Eugene”, in https://www.youtube.com/watch?v=ikwBBNnn2gI

A partir do baldio que se desmata com critério, chegamos a um promontório. Deixámos os despojos de urze e outros, para nós (leigos na flora) inomináveis, arbustos e ervas rasas. Atrás de nós vem outra safra – recolher esse espólio que há de ter melhor utilidade do que ser rastilho de incêndios tumultuosos.  

Se o olhar esquadrinhar a paisagem que nos cerca, encontra pedaços consumidos pelo fogo. São fragmentos encarvoados que contrastam com os outros, por fortuna em maioria, que manifestam um verde vicejante. Dir-se-ia ter sido de chuva abundante o Inverno deposto pela Primavera habilitada, mas não foi o caso. Os peritos não se cansam de evocar o Inverno suave e seco. Como estaria o mato rastejante, e seria ainda mais vicejante o verde da paisagem não consumida pelo fogo posto, se as chuvas tivessem obedecido às estatísticas do clima?

Os pastores e os agricultores das aldeias limítrofes deitam um olhar interessado aos fardos que empilham esses despojos. Farão de cama nas cortes para o gado. Algum desse restolho servirá de mantimento para o gado. Mandam as regras (todavia, não escritas – que são sempre as mais ordeiras): os interessados não têm de pagar pelo produto do desmate.

Um pastor com olho clínico, depois de arrematar dois fardos, observa que a economia não tem de ser sempre sobre lucros. Nos arrabaldes do sistema económico que vem nos manuais, o pastor reinventa a Economia (mas não sabe da autoria do rasgo). Os voluntários que se propuseram para o desmate da serra geraram modo de vida para os agricultores e os pastores da região. Para os voluntários, o serviço é inestimável. O voluntariado não se traduz em vantagens tangíveis, a não ser as que forem estimadas pela elevada subjetividade dos voluntários. Os pastores e os agricultores beneficiam das sobras que os baldios geraram com o beneplácito do Inverno. E todos ficam a ganhar se os montes não forem trespassados pelo inferno de incêndios assassinos.

Nem tudo que é merecedor da ação humana se traduz em números numa máquina de calcular (hoje substituída, e com vantagem, de acordo com os peritos, pelo Excel). É como se fôssemos jogadores num jogo de cartas e as cartas não tivessem números nem figuras traduzidas em números. As cartas em branco são sucessivamente preenchidas pelos jogadores, ao seu critério, à medida que o jogo se joga.

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