Os regressos povoam páginas a eito, diziam. Discordava. Os regressos são a piedosa subserviência do passado, sem outro fito a não ser prevenir o futuro. Por isso era síndico do tempo que ainda não tinha sido admitido a concurso. Esbracejava contra revivalismos. Continha a História evocada com galhardia, como se a evocação de proezas as perpetuasse (e só eram perpetuadas no imaginário popular que se servia, banalmente, dessas proezas). Talvez se arranjasse umas páginas ainda por dedilhar e a ocasião depusesse a ditadura da memória. Mas não ia dissolver o passado, que não há vivalma desalojada do seu passado; apenas não obedecia constantemente às convocatórias do passado, como se o tempo restante tivesse sido banido dos relógios e todos vivêssemos agarrados às costuras (já puídas) de todo o passado. Era síndico das possibilidades que eram oferecidas às pessoas. Não que fosse seu mister zelar pelos interesses dos outros; era apenas síndico dos seus horizontes, já era matéria de sobra. Não era de outra generosidade que vertia o seu olhar compassivo. As dores dos outros eram apenas suas. Não se constituíra síndico para apalavrar as dores que consumiam os outros. A imprevidência agasalhava as dívidas dispostas pelo brio do tempo havido. Nem as sombras conseguiam colonizar as páginas à espera de vez. Nem as palavras agressoras, no testamento selado perante o procurador da melancolia, subiam as encostas à vista do olhar. Sentidos seriam os boémios se arranjassem espaço para estas adversidades. Mas eles são o puro compêndio do hedonismo sem autor. Se fossem blindadas as paredes dos labirintos, só haveria boémios – e já ninguém seria boémio, por exaustão da condição. O mosto colhido aviva-se na candeia ateada pelos dedos suados. Esse é o suor de um síndico que concorre contra a corrupção das almas derriçadas por excesso de passado.
19.5.22
Síndico (short stories #382)
The Smile, “Waving a White Flag”, in https://www.youtube.com/watch?v=RlHEPF4Pqos
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