3.5.22

E o dignitário escapou aos tomates podres

Pale Blue Eyes, “Mr. Pong”, in https://www.youtube.com/watch?v=Sx7U4eH7Vb0

O presidente da república francesa visita um local hostil e é recebido com o arremesso de tomates. O comentador, na televisão, desvaloriza o ocorrido: “mas correu tudo bem” – atesta – “os guarda-costas abriram guarda-chuvas e Macron nem foi atingido pelos tomates.”

Podia-se começar a pensar em mecanismos de ação direta que envolvam o arremesso de frutas e vegetais contra os políticos mal vindos a esse local, como medida da sua impopularidade. Seria a forma indisfarçada de expor o descontentamento aos representantes quando vão de visita aos representados e encaram uma horda pouca amigável por causa dos maus resultados das políticas adotadas (ou da má interpretação que deles fazem). Em vez de vociferações mais ou menos audíveis, de palavras de ordem que roçam o ultraje, um arsenal de tomates com excesso de madurez, ou de laranjas sem serventia, ou de ovos que já pertencem à podridão. 

Seria como dar acesso ao povo a mecanismos mais (como dizê-lo?) contundentes de manifestar a impopularidade do regente que está de visita. As palavras, por mais desagradáveis que sejam, parece que não ecoam como dantes. Os políticos de hoje aprenderam a conviver com o ultraje, com o topete dos governados que não hesitam em desfeitear em público a honra e as desvirtudes de suas excelências. Como fingem a surdez, ou exibem a olímpica impassibilidade ao escutarem impropérios, a insatisfação manifestada pelos governados tem de se fazer sentir na própria pele dos governantes (ou de aspirantes a sê-lo). 

Dirão: a deflagração de legumes ou de frutos apodrecidos no corpo de um dignitário é uma violência inaceitável. (Como se houvesse violências aceitáveis.) Outros, que dispensam a mediação dos representantes e acreditam que a ação direta subsume a legítima essência da democracia, apostarão em cursos de formação que instruirão os candidatos à baderna a saberem escolher os legumes ou frutos suscetíveis de arremesso. Será sempre importante que a parafernália de podridão seja representativa da região que se subleva contra a visita de cortesia do governante. Numa região vinícola, sejam atiradas uvas no limiar da podridão (se os produtores as desestimarem para vinhos de colheita tardia...) em vez de tomates.

Pois, assim como assim, até já temos direito a comentadores na televisão pública a desvalorizar o acontecido, sossegando os espetadores ao revelarem que o presidente da república francesa nem sequer foi atingido pela chuva de tomates, malgré tout.

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