Só sobem à boca as canções que pertencem à moldura da vida. São elas que ficam tatuadas na boca irrestrita. Só cabem as canções, umas ouvidas quase até à exaustão, outras que foram apenas apeadeiro passageiro, mas diletante. Como se essas canções tivessem sido escritas para mim.
É essa pertença sem ramal que fica a pesar no imenso espaço que medeia entre uma vida e todas as outras que foram necessárias para a autoria da canção. Às vezes, é preciso compor as estrofes vívidas que acompanham uma música, e essas estrofes dão corpo à música. Às vezes, compulsam-se as músicas sem vozes para lhes emprestar as estrofes que crescem no céu da boca enquanto o corpo se inebria com o desfile dos instrumentos.
Dizem que há músicas com correspondência a episódios de uma vida. Há certas músicas que perfumam um estado de espírito e que não são compatíveis com outros estados de espírito, opostos ao primeiro. E eu digo que as músicas não obedecem a nenhum critério, a não ser o critério do não-critério. As músicas apetecem e desapetecem à mercê do momento e das circunstâncias, dentro ou fora do inventário conhecido. As que são inventariadas podem não encontrar um dia a preceito. Têm de esperar por outro dia. Sabem que têm lugar marcado na plateia onde se inauguram as músicas à medida do feitio de um dia. À espera da escolha de um dia.
Às vezes, uma música que parecia perdida no labirinto é resgatada do oblívio. Por um encontro de circunstâncias, por um acesso da memória, que a esquadrinha do magma mais fundo onde a memória se alcança, por uma mnemónica habilitada por uma emissão de rádio, por um acaso, por um descaso. E outras vão sendo desvanecidas na efemeridade do tempo que as consome, até ficarem apenas uma distante evocação na arqueologia musical. Ou até voltarem, do nada, a ter um palco à medida.
O cortejo das músicas é um retrato das vidas que se jogam no seu incorrigível sortilégio. São um pouco do cimento que dá corpo a uma vida. Da vida que se agarra à pauta por onde se conduz, na quimera que, do posto de observação, é incessante. Como a música, inesgotável manancial.
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