13.5.22

A última página

Nick Cave and the Bad Seeds, “Ghosteen”, in https://www.youtube.com/watch?v=7IE5A2_LV6I

São inúteis, as profecias. Arruma-se a posteridade contra a prisão do presente e somos fiéis depositários de um punhado de lugares havidos na geografia do possível. Revemos os lugares, os nossos reservados em posição centrípeta. Revemos os diferentes tempos, como se soubéssemos que eles sopesam a filigrana do tempo vindouro. É como se procurássemos oráculos e, se fosse possível encontrá-los, sobejasse a amargura pela confissão do impossível.

Desenham-se as páginas consecutivas enquanto o tempo passa à janela do comboio. São árvores, colinas, rios, pessoas, automóveis e estradas, lugares e as pessoas que se escondem nas casas e as que habitam momentaneamente nas ruas, a chuva, o sol e as nuvens que se entrecortam. É toda uma história arquivada no espaço preenchido por uma certa medida de tempo. E os comboios que ali passam em todas as medidas do tempo. Quantas páginas seriam preenchidas com as anotações das vidas que desfilam em nota de rodapé? 

As páginas têm a constância de rostos anónimos. Como se todos esses rostos fossem rosas que compõem um bouquet, todas elas semelhantes, todas acabando por decair na indiferença. Se as vidas se entrecruzassem, as páginas seriam um emaranhado de frases sem articulação, um texto possivelmente ilegível. E as páginas, dedilhadas umas atrás das outras, seriam como calendários num povoado armadilhado, os degraus de escadas expondo os disfarces contra a ditadura do dia corrente. 

 Talvez levantar o véu sobre os vultos que açambarcam a claridade seja preciso para deixarmos de ser parte desses vultos, apátridas em páginas sem meação. A roda-viva das palavras sem idioma atropela a mancha branca da página; enquanto se mantiver caiada pela ausência, a página tomada pelo silêncio insulta o desejo irreprimível da fala. Por isso elas vão-se sucedendo, umas atrás das outras, inventariando as várias falas que se sobrepõem. Na plêiade de idiomas encavalitados, uma língua-franca empresta-se às páginas, retirando-as do torpor.

 O que nenhuma profecia acautela é o sentido da última página. Não há vivalma que procura afincadamente o lugar onde se esconde a última página. Os que assim capitulam já escreveram a sua última página há muito, ainda que continuem a contar para as estatísticas. Nós, que somos amadores contabilistas das páginas em barda, não queremos saber da última página. Somos perenemente mecenas da página que está à espera de ser tangida. Essa é a página que se segue à última página.

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