18.5.22

As estátuas sem nome

Black Country, New Road, “Basketball Shoes” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LXoUJ0uwTeo

Uma correria desenfreada contra os costumes: sem aviso prévio, alguém desalgemou as estátuas de seus nomes. Por toda a cidade, as placas que lembravam os nomes dos estatuados foram removidas.

Ao início, o burburinho espalhou o rumor: as estátuas tinham sido boicotadas. Era terrorismo contra a memória da cidade. Não se extinguem os nomes das estátuas sem outros motivos que não seja a ablação da memória. As estátuas sem nome eram amputações de si mesmas. Por mais que os corpos das estátuas não tivessem sido mutilados, a remoção da toponímia era um atentado à memória coletiva. Os insurgentes queriam lavar o passado da memória das pessoas. O clamor agigantou-se pelos bairros da cidade, unânime, sem olhar a habilitações escolares, profissões, género e crença. 

Só ao fim da manhã, após as horas de desorientação coletiva que tomaram conta da praça pública por toda a cidade, as autoridades publicaram um comunicado. A remoção dos nomes das estátuas não tinha sido um ato de terrorismo, ou um estalinista desfazer da memória. Tinha sido propositado. Os edis foram os mandantes e os funcionários da edilidade foram para o terreno. A coberto da noite, e sob o mecenato de uma cidade deserta, as brigadas instruídas pelos serviços de cultura do município percorreram a cidade e retiraram os nomes às estátuas. Era um desafio aos cidadãos, para reporem, e o mais depressa possível, os nomes das estátuas. A política era servida do avesso: desconstruía a habitual inércia, à espera que os cidadãos fossem os agentes ativos da reconstrução. Seriam eles a restaurar a memória da cidade, devolvendo às estátuas a vida plena. Seriam os cidadãos os promotores da cultura e os zeladores da memória coletiva.

A tarde foi de azáfama. Espontaneamente, os cidadãos acorreram às estátuas. Pegaram em cartolinas deixadas nas imediações de cada estátua e escreveram, sempre em letras garrafais, os nomes das personalidades com direito a estátua. Nunca a cidade conheceu tanto frenesim, tanta defesa dos seus pergaminhos ancestrais. Ao entardecer, os nomes tinham sido devolvidos às estátuas. Não sobrou uma estátua sem nome.

O caso ficou emoldurado para memória futura. Um caso de estudo. As pessoas não estão mergulhadas na hibernação, como tantas vezes se admite. Só têm de ser desafiadas a reagir ao que elas consideram ser merecedor de reação. 

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