12.5.22

Hidrogénio

Club Makumba, “Jimmy Habibi”, in https://www.youtube.com/watch?v=pnyvqigBnzc

“Se os precipícios não tivessem arestas, as pessoas deixavam de ter medos.” Supunha que a convicção era fundada numa avaliação de si mesmo. Mas quem se abeirava de precipícios sabendo dos seus efeitos irremediáveis? Talvez a pulsão para sermos lobos de nós mesmos – quem sabe? – investisse nas probabilidades.

“Sabes como é redondo o ponto de interrogação? Não tem as arestas de um precipício e, contudo, destila perigos semelhantes.” Juro que comecei a desperceber a formulação, que parecia gratuitamente especulativa. Primeiro, não entendia como o arredondado do sinal de interrogação vertia uma qualquer significação nas interrogações. Poder-me-ia dizer que congeminava uma metáfora, mas não via como se tecem os pespontos entre o arredondado do sinal de interrogação e o formato de uma pergunta. Segundo, se as interrogações não passam pelo crivo das arestas, como podem encerrar medos (pois que são as arestas dos precipícios que fermentam os medos correspondentes)?

Não estive no tempo que antecedeu estas frases cifradas. Não sei se já tinha consumido algum álcool e fosse o álcool misturado no sangue a falar. Ou, em vez de oxigénio, talvez hidrogénio a desoxigenar o pensamento, tornando-o rebeldemente furtivo e vocacionado para a desordem. Fiquei à espera do capítulo seguinte – tanta eloquência daria um fartote de sabedoria ininteligível. 

(Afinal, a sabedoria que se amanha num logro completo, com a curadoria de eruditos que raras vezes entendem a sapiência dos que enaltecem como esteios da erudição.)

Ao fundo do cais, vigiávamos a chegada de um pesqueiro. A atestar pelo bando de gaivotas que adejavam sobre os depósitos do pescado, a faina teria sido um olímpico feito. Enquanto anotávamos a desordenada coreografia das gaivotas – e como eram enxotadas por pescadores atarefados – disse-me:

Se em vez do avesso virássemos o leme para o acaso, não lamentávamos os contratempos que os notários cuidam de lavrar em ata. Seríamos plenos, como a maré cheia que nos atira esta maresia, ou aqueles pescadores que hoje vão de regresso a casa com os bolsos cheios.

Comecei a preparar o amanhã. A véspera era convidativa. Talvez ao jantar comesse sardinhas – não sei se a faina trouxera sardinhas, mas li notícias sobre as primeiras sardinhas da temporada. Não sabia se os meus bolsos tinham numerário suficiente para o aprovisionamento do jantar. Não havia problema. As maravilhas da tecnologia inventaram o dinheiro de plástico. Já não era fácil pedir fiado por esquecimento do numerário.

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