Eram demoradas, as noites. Povoadas pelos demónios, todos despidos de rosto. Convocava os antídotos. As esperas pareciam perenes. As luzes, desmaiadas. As palavras que protestavam contra o silêncio consumiam-se na sua sublevação. Dizia-se que até os mares dormiam, mas as pessoas não podiam ver o seu sono, que se materializava nas profundezas.
Tudo se passava como se fosse um palco a que subiam presas e predadores, sem que ninguém soubesse o seu papel. O jogo dos corpos transidos, amarrados ao medo de serem vítimas, deixava-os anestesiados. Não sabiam o que dizer, o que fazer. Erravam, circunspetos, como se tivessem sido alimentados por mantimentos fora de prazo e estivessem quase a bolçar. Tudo o que bolçassem seria o parto do mundo. Disso sabiam, sem importar o papel que iam incarnar.
As silhuetas apareciam disformes. Se tudo fosse de acordo com o manual do otimismo, haveria palavras meãs que sairiam do vocabulário – pois é o destino dado às palavras que passaram a constituir letra morta. Na mortalha, os corpos conspiravam contra os poros que suplicavam por alívio. O mundo só lhes concedia a angústia espartilhada por diversos lugares do tempo. Por mais que intercedessem (sem saberem a quem dirigir a intercessão), os vultos agigantavam-se e tomavam parcelas maiores do palco. Eram eles os predadores, surgidos do nada, paraquedistas sem pré-aviso a embaciar a lucidez dos rostos que já não podiam ser desembaraçados.
As pessoas diziam, num lampejo de ânimo: “estamos juntos, nada nos pode sobressaltar.” E a angústia que fora véspera depressa se tornava anciã, alquebrada, ermal. Despida do seu lugar, a angústia era devolvida aos rostos dissimulados dos vultos, que tão depressa tomaram proporções exacerbadas como desapareceram, saindo de cena sem o mesmo pré-aviso com que nela apearam.
Os rostos das pessoas ganharam vivacidade. Sorriam, descomprometidamente. Levantavam o véu dos escombros e conseguiam ver que só havia vítimas em palco. Na ausência de predadores, as presas não eram açambarcadas pela angústia. Também a angústia estava a caminho de ser proscrita, encavalitando-se na armadura a que pertencem as palavras datadas e sem serventia.
Agora, as pessoas sabiam que podiam tratar o mundo por mel.
1 comentário:
A Rússia Não Vai Parar de Lutar Enquanto Não Destruir Por Completo o Império Anglo-Sionista:
https://toranja-mecanica.blogspot.com/2022/06/a-russia-nao-vai-parar-de-lutar.html
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