30.12.22

Stella Maris

Einstürzende Neubauten & Meret Becker, “Stella Maris”, in https://www.youtube.com/watch?v=o1gDClilqdU

Prometo o arquipélago bucólico, onde apenas se falam palavras simples. No refúgio da alma, como se precisássemos de exílio, sem sabermos exílio de quê. Exílio apenas, como pretexto de uma entrega sem fronteiras.

Prometo a estrela figurada arrancada à boca do céu. Para dela fazeres guia, dispensando a bússola de outro modo exigível. Em preparação do sortilégio de que somos embaixadores, arrumando no amanhã a pele insondável.

Prometo o que for de fora de mim, até que a estrada esteja pronta para nos dar o infinito.

Prometo a neve em vez do Verão, o frio heurístico como modo de ser, os lagos encaixados na cordilheira alcantilada, o verbo alpino que desfaz o ultraje da rotina, os arranjos estimados na ardósia diligente, os mapas que sacrificam o sangue sedentário. Prometo, com o vagar das sílabas, disfarçar a limitação do tempo para sermos perenes. E prometo desmentir as clepsidras que se estimam na varanda dos dias, por sermos autênticos tutores das estrofes que habilitam o presente.

Prometo: dizer o silêncio que só nós sabemos decifrar. 

Prometo as artes todas, no opúsculo de que somos autores, entre os arrepios e as lágrimas irreprimíveis quando os sentidos dançam sob o comando da música, do cinema, do teatro, da poesia.

Prometo o inventário dos nomes que contamos enquanto o crepúsculo se deita nas costas de um livro, no fundo de um copo de vinho já embaciado. Prometo entardeceres avulsos, pressentimento de geografias que deixam de ser ausentes, para nos despojarmos à boca do vulcão insolente.

Prometo avançar pelo mar adentro sem que o mar tempestuoso seja maior que o meu corpo. Prometo fazer ilhas pelo mar afora e registá-las em teu nome. Para depois estabelecermos o nosso domínio exclusivo, sem direito a outros nem que estejam na posse de salvos-condutos.

Prometo ir ao mar e trazer (escondida) uma estrela marinha. Prometo usar a estrela marinha como caneta militante que transforma angústia em poesia, a poesia que aprendemos a escrever a cada dia mestiçado nos nossos corpos.

29.12.22

Porão

Madrugada, “Call My Name”, in https://www.youtube.com/watch?v=JcaynoMYGR8

Porão, como o clandestino. Não se alimenta o povoado dos mantimentos guardados no porão quando ainda são transportados desde remota origem? Desses mantimentos, a aritmética da sobrevivência, só sobram as palavras sobre iguarias preparadas que são o adestramento dos sentidos e o código da subsistência. 

Ou porão, como esconderijo. Muitas vezes, por imperativo do anonimato. O perfil sem holofotes impetra a irrelevância nas ruas. Que ninguém seja reconhecido quando a rua está apinhada de gente e os rostos se entrecruzam, espiolhando-se reciprocamente. Os rostos avençados não se cuidam na desmesiricórdia cultivada. Desembaraça-se a fuligem com um simples sopro. Não se enquista na ossatura funda, não se torna o magma de um vulcão sem paradeiro.

Porão, também como forma verbal, um contrato com o futuro. A promessa de deposição de um objeto, de um ato, de uma palavra, de uma estante inteira, de uma intenção avalizada. Que ninguém descuide as juras desembainhadas: os azulejos perenizam-se, imunes à decadência que se costura nas bainhas do tempo. São seus juízes inexoráveis.

Porão, como exílio. Uma certa forma de misantropia. Fuga intencional das extravagâncias de um lugar que se tornou descaminho. Ou fuga do passado. No porão, ao menos, o reencontro. Como se o sangue se libertasse dos vieses que o adulteraram, sem que a parecença cumprisse o elixir da identificação.

É no porão que se alberga a imensa biblioteca da vida sem ficar à mercê das frivolidades hodiernas, dos lugares-comuns proclamados, com a solenidade do que desimporta, pelos macilentos procuradores do injuntivo saber estar com os outros. Na biblioteca encontram-se as páginas quiméricas que são o compêndio mínimo de um reencontro por dentro de si. Tal como se fosse preciso tirar as medidas de si, outra vez – as vezes que forem precisas. Não se mostram os dedos frágeis que aprenderam a não tiritar sob o efeito do frio. É no porão que os dedos doseiam o frio necessário para não ser delinquente.

O porão, arquivo máximo das memórias hasteadas no portal do futuro, sem porta-chaves nem código secreto. De porta sempre aberta aos que pressentirem um demiúrgico refúgio que os extraia à violência do mundo que existe. Um fingimento, para combinar com a farsa de que somos acionistas.

28.12.22

Aval (short stories #414)

BADBADNOTGOOD, “Love Proceeding”, in https://www.youtube.com/watch?v=LRDmyRJsPwM

     Procuras um conceito. Procuras saber através da encruzilhada constante. Se não fosse pelos infortúnios dos outros, não darias conta da tua fortuna. Agarras-te ao xisto perene para estear os socalcos. Impõe-se a elegância dos socalcos, para reger as tribulações que desarrumam o corpo. Só tu podes encontrar em ti o aval de que precisas. Porque convencionaste que tudo deve passar pelo crivo de um aval. Mas, sabes(?): nem tudo se candidata ao escrutínio de um aval. Deixa fluir os acontecimentos, deixa o tempo ter o seu modo, e o resto será uma dádiva por mais que sejam tempestuosos os palcos andados. Não precisas de epifanias, ou de momentos deslumbrantes que contrariam a hibernação, desmontando-a. Não precisas de aval, para nada que seja. Por mais que te convenças que o aval é um exercício interno, é-lhe inata a mortificação de quem busca um consentimento exterior. As ações tornam-se consequências nos limites dos seus fautores. O resto, não conta. Não contam os olhares dos outros que se abatem em forma de julgamento; os adágios que arrefecem a audácia; os rios aprisionados que contêm uma forma limitada e medíocre de ser; os dicionários que não quadram com a tua semântica. Tens direito a uma semântica. Não tens de a explicar. Os vetustos vultos que se propõem a colonizar a tua consciência dir-te-ão que se cada um for nativo de uma semântica não há comunicação que resista. Não dês atenção. São os apóstolos da coesão, adoentados por observarem como são diferentes as pessoas (mesmo as que se ungem sob o cimento de uma identidade). O aval és tu mesmo. Dissemelhante no que achares por bem. Sem insistires na exigência de um aval para te legitimares. Não faças concessões: a legitimação é para consumo interno. Se a consciência fraquejar, não percas o norte. És imperador por dentro de ti.

27.12.22

Moeda de troca

Sault, “Miracles”, in https://www.youtube.com/watch?v=kfc_YngK4bY

A enseada era o refúgio esperado. Não havia pessoas. O entardecer poluído pelas palavras sobrepostas, uma cacofonia insolente, estava extinto. Havia apenas o mar diante dos olhos. O mar sentido, isento de ondas, que beijava vagarosamente a praia vigilante. E as costas, a opacidade irrelevante.

A algibeira era portadora de um punhado do moedas. Moedas diferentes. Era uma amostra do mundo andado nos tempos recentes. Não escondia o orgulho em ser cosmopolita, acreditava que o conhecimento de diferentes lugares era o melhor tirocínio da vida. Dispôs as moedas em fila no parapeito do miradouro sobranceiro à enseada. Num equilíbrio instável, as moedas assentando sobre a fina parte lateral, amparadas pelas irregularidades do amurado. Passou em revista todas as moedas, enquanto convocava a primeira memória dos lugares que correspondiam a cada moeda. O valor de rosto podia não coincidir com as memórias atestadas.

Um golpe de vento corrompeu o equilíbrio instável de algumas moedas dispostas. Não todas. As que se mantiveram de pé podiam corresponder aos países baluartes. As outras, seriam a expressão de uma fragilidade. A distinção permitia tirar outras conclusões. Muitas vezes, as fragilidades representam uma fortaleza que escapa ao olhar até do mais atento. Esses são os segredos que trazem a melhor recompensa à curiosidade dos sentidos.

Se juntasse todas essas moedas e as propusesse em troca uma outra, a uma espécie de moeda-franca, que moeda seria? Não seria a moeda forte, banalizada no sistema monetário. Seria uma outra moeda, de um lugar ainda por visitar. Um lugar em espera pela sedução trazida por informações avulsas. A moeda de troca, à espera que a vontade se desembaraçasse da hibernação.

Passou os dedos pela pele. Os poros exibiam os lugares contumazes. Como se fosse um mapa que descobria os lugares por demandar, os lugares que, uma vez visitados, derrotavam a angústia do conhecimento minimalista. A simulação das moedas era mais do que um jogo. É a vontade que não desbota quando os olhos param diante do planisfério. A moeda de troca assume a forma de todas as milhas percorridas, todos os aviões embarcados, todas as cidades inventariadas, todos os idiomas e as cores e sabores e credos e raças que mobilizam a condição de forasteiro contínuo. Dessas coisas intangíveis.

26.12.22

Manifesto contra os portadores de vozes

Fat White Family, “I Believe in Something Better”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZgX20b_aqrg

Quem precisa de outrem para ser o mimo que fala na sua vez? Quem confia cegamente no portador de voz como tradutor do seu pensamento? Quem precisa de esconder assim do público?

Sou contra portadores de vozes. Convocatória ao rigor: sou contra os que delegam a sua voz noutrem porque dão a impressão que fogem ao escrutínio. Não o conseguem na íntegra, pois as palavras do portador da voz estão sempre expostas ao escrutínio. Há uma diferença que faz toda a diferença: se os escrutinadores interrogarem as palavras ditas, quem tem de oferecer resposta não é o titular das ideias mas o portador das palavras que as transpõem para a comunicação. Quem fica entalado não é o figurão, mas o portador das suas palavras. E não é justo, a menos que o portador de voz saiba que existe também para servir de carne para canhão.

Sou contra os portadores de vozes porque, por mais que sejam fieis às ideias que as traduzem, algo se há de perder no ruído surdo da comunicação. Quando o portador de voz se limita a ler uma comunicação possivelmente redigida pelo delegante, não existe este défice de transmissão. Neste caso, não se entende por que o figurão precisa de uma marioneta falante. Se não for o caso, e a trela tiver margem de manobra para o portador de voz usar as suas palavras para reproduzir as do delegante, o mais certo é existirem brechas aqui e ali que adulteram o que o delegante quis comunicar. Se for intencional, o figurão deve ser acusado de ludibriar os destinatários das suas mensagens. Esconde-se no biombo atrás do portador da sua voz. 

Sou contra os portadores de vozes porque os delegantes aparentam temer o público, ou, por tão importantes serem, nem sequer têm tempo e paciência para informarem as tão importantes coisas que delegam no portador de voz. Soa a desprezo pelo público.

Sou contra os portadores de vozes porque se intrometem entre o figurão e as pessoas, quando não deviam existir filtros entre ambos. São responsáveis pelo ruído que contrafaz a comunicação. Representam a metáfora da falta de coragem. Corporizam o excesso de protagonismo de quem devia existir apenas nos bastidores.

23.12.22

Polícia do natal (carta aberta à população em geral e às crianças em particular)

Lisbon Poetry Orchestra feat Garota Não, “Projeto de Sucessão/Rêve Oublié”, in https://www.youtube.com/watch?v=8NMziGc4sag

De: primeiro-ministro

Para: cidadãos, em geral, e crianças, em particular

Caros concidadãos e petizes com tanta sede de natal: sabem que natal significa nascimento? A Constituição declara que o país é laico. Não é aceitável que o natal seja limitado a uma celebração religiosa. Temos de ser ecuménicos. O natal, quando existe, é para toda a gente (que o quiser). Todos, para sermos alguém, nascemos em primeiro lugar.

(Para agradar aos outrora consortes da geringonça). 

Festejem o natal como vos aprouver. O que interessa é o gozo da liberdade, para não sermos reféns de uma celebração obrigatória. 

(Para agradar à Iniciativa Liberal, com endosso de desculpas – porque o natal é pedir desculpa a quem magoámos – pelo destrate de que os liberais foram vítimas recentemente.)

Este ano, decidi criar uma polícia do natal. A ASAE do natal, por assim dizer. As renas têm de ser fiscalizadas, para confirmar que não são maltratadas pelos tratadores, hipótese em que todos seríamos cúmplices de inqualifáveis maus-tratos a animais.

(Para agradar o PAN e os ambientalistas em geral. Os Verdes foram extintos do parlamento, deixaram de contar – como já antes não contavam, ao serem verdes por fora e vermelhos por dentro – para a equação dos equilíbrios politicamente diplomáticos.)

A polícia do natal certificar-se-á que todos têm direito a uma prenda e a uma vontade subjetiva garantida para o ano vindouro, especialmente aos que sejam oprimidos no (ou pelo) trabalho. 

(Destinado aos camaradas do PC.)

Também terá competência para atestar se o que vai à mesa da consoada respeita as tradições culturais, perseguindo os fautores de todas as iguarias natalícias treslidas, os cozinheiros afetados e os adeptos do multiculturalismo que tiverem autorização para ir para a cozinha.

(Destinado ao Chega e ao seu líder omnipresente, mau grado seja público e notório que o governo e o partido que o suporta – ou vice-versa – delimitaram um cordão sanitário contra este partido. Mas é natal, a concórdia fala mais alto e a imagem do primeiro-ministro precisa de ser refrescada depois de vicissitudes recentes.)

Como derrogação do preceito anterior, a polícia do natal esforçar-se-á por proteger os pais natais que se apresentem como mães natais ou como indiferenciades natais, ou como pretos natais (com a licença para usar a palavra “preto”), que a diversidade de género e de raça e de opções de identidade sexual também tem lugar @ mesa.

(Dedicado aos companheiros do Bloco, que às causas fraturantes não se deve apor gesso – e o ministro dos comboios vela para os seus serem bem tratados).

(O CDS não teve direito a beneplácito. Desapareceu do parlamento e agora não sai das sacristias.)

22.12.22

E se as árvores fossem mandamentos?

Depeche Mode, “Walking in My Shoes”, in https://www.youtube.com/watch?v=mQ2plyhNmZc

As árvores emprestam-nos oxigénio. Aprendemos na escola, aquilo da fotossíntese. Os mandamentos da ecologia aprendemos depois, quando os ecologistas começaram a entrar pelos ecrãs da televisão e o catecismo ambiental se propôs a reparar o pensamento cristalizado sobre o ambiente. Aprendemos a respeitar as árvores. Foi pena ter sido preciso aprendermos com os ecologistas. Devíamos ter aprendido, de mote próprio, a reconhecer a função primacial das árvores. 

Dito desta forma, parece uma exibição de oportunismo. Só devemos valor às árvores porque sem elas o oxigénio escasseia – e sem elas seríamos prisoneiros de uma paisagem desenriquecida (quem prefere uma paisagem árida à beleza demiúrgica de uma paisagem dominada por árvores?). Há oportunismos que se perdoam. Correspondem a um palco maior, em que se considera o conjunto no seu todo. Soubéssemos ter sido parceiros das árvores e seríamos habitantes de um lugar mais rico. Omitir este oportunismo é uma autofagia antropológica.

As árvores não são meros expedientes da paisagem. São todo um mandamento de vida. Um abrigo. Uma inspiração, que abriga na sua copa os órfãos de alguma coisa. Uma certa forma de gramática. Uma forma inteira de conhecimento. Rasuram as arestas que ferem a pele. São um tratamento autónomo da alma, que não fica indiferente a uma mancha de árvores se a alma responder aos desafios da sensibilidade. 

Esquecer (ou ignorar) estes mandamentos introduz os indivíduos ao ultraje das árvores, que pode findar com o seu assassinato. Os dendroclastas não se identificam enquanto tal. Julgam que são naturais os atos que ferem de morte as árvores, ou os meros atos que ostentam o desrespeito pela floresta. Não se trata de assassinato das árvores: é suicídio da espécie.

A floresta devia integrar uma lei de bronze, inamovível ao longo das gerações. Para aprendermos que sem as árvores somos espécie amputada. Sem árvores, temos paisagens castradas. Pelo dano corporal a cada árvore, por cada ramo gratuitamente removido, por cada grama de insensibilidade pelas árvores, é como se partes avulsas dos corpos das pessoas fossem amputados de um cantão da alma. 

As árvores deviam ser um mandamento, sem ponto de interrogação.

21.12.22

Gastronomia às cegas

Cocteau Twins, “Evangeline”, in https://www.youtube.com/watch?v=9yapze5PaFs

Faz lembrar aquele filme de Kubrick, em que os circunstantes iam às cegas e ficavam à mercê do jogo dos corpos e do desejo, de olhos vendados, sem saberem os corpos com que se fundiriam. A modalidade expõe-se à analogia: os que amesendam sem saberem a ementa, apenas sabendo que ficam à mercê dos caprichos do chefe que, desde a cozinha, prepara a tempestade de acepipes. É um tremendo voto de confiança – e, para os que impuserem a si mesmos tabus alimentares, um despojamento que equivale a um exigente auto desafio.

É um exercício arriscado. Os que amesendam não estão de olhos vendados. A ementa em branco é a metáfora dos olhos vendados. Se à mesa subirem sabores que não caem nas boas graças do palato, os amesendantes desforram-se no vinho: uma das suas serventias é cobrir um sabor desavenho que ficou a adornar na boca. Não pode ser o momento da capitulação. A gastronomia às cegas prossegue espera pelos ulteriores momentos. 

Os momentos disputam a preferência dos amesendantes. Os paladares desfilam como uma palete onde as diversas matizes ora se combinam, ora parecem dissonantes. Os amesendantes são anestesiados por um dilúvio de sensações. Podem simular uma venda sem ser retórica. Antecipam a subida a palco de mais uma iguaria fechando os olhos. Continuando de olhos fechados à medida que o primeiro pedaço desce à boca e se entrega ao seu escrutínio. 

A gastronomia às cegas é uma aproximação à poesia. Pela inebriação que ateia. Pela multiplicidade de paisagens gastronómicas que atravessam os sentidos. Pela criatividade com assinatura do cozinheiro, que se entranha no mais fundo da carne à medida que as iguarias se apresentam aos amesendantes. 

A mistura de sabores é o quociente da imaginação que os arranca do arcano preconceito que ensinou a sua incompatibilidade. Há carnes que se cruzam com reduções vínicas perfumadas com frutos vermelhos (ou com kiwi baby), servidas com risoto de castanhas. Há peixes que recebem uma cama de frutas diversas caramelizadas no forno com a benção de Vinho Madeira. Há mariscos cruamente fatiados, deitados numa cama de rebentos, acompanhados por gelado de lima e gelado de chocolate branco e jalapeños (e não consta como sobremesa). Há um tártaro de framboesas brancas, groselhas e ruibarbo macerados em Porto Lágrima com crocante de panceta

Os cegos saem do santuário prontos a ver como nunca lhes foi dado a ver. Uma cegueira destas é a cura para quem julga tudo ver e, todavia, tropeça em peias muito próximas.

20.12.22

Espadas sentadas

Black Country, New Road, “Bread Song” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=v6-QjzzEUZo

Tossicava. “É por causa dos nervos”, admitiu. À sua frente, a porta majestática. Não sabia o que encontraria caso o passo não fosse em falso e atravessasse o umbral. E se fosse um labirinto? E se se arrumassem as prateleiras para que os corredores ficassem vazios e as pessoas pudessem andar, desembaraçadas? E se fosse apenas um edifício, preso à sua irrelevância?

Na porta, um dizer em latim. “Se ao menos tivesse aprendido latim na escola...”, ciciou um quase arrependimento. Só não era arrependimento na íntegra porque mal o olhar se libertasse do latinório esquecer-se-ia da utilidade do latim. As palavras, contudo, bebem na fonte do latim. “Talvez devêssemos aprender latim na escola. Como pode ser o latim uma língua morta, se é dela que emanam as línguas latinas?” 

Se espadanássemos o forno onde fermentam as palavras, e se o latim viesse ao caso, a gramática não era tão lesada. O latim parecia o militar morto em combate, os seus despojos humilhantemente caídos no campo de combate e, de volta dele, os algozes empunhando as armas que o condenaram à extinção, posando para a fotografia soez. Os habitantes das línguas vivas não se importam com o parricídio. A estultícia não os deixa perceber que o enterro do latim determina a orfandade dos idiomas que falam e escrevem. Dos idiomas de que são, com acentuada frequência, torcionários. Por isso não se importam.

“Parece que as espadas estão sentadas. Não há caso de fazer a guerra.” Dentro do edifício, umas estátuas exibiam espadas embainhadas no coldre do esquecimento. Julgou perceber o simbolismo das estatuetas. As espadas sentadas não trespassam corpos. Não se ajuramentam no belicismo. Talvez tenham sido artefactos de guerra no passado. Talvez estejam oneradas com a carne que trespassaram, com o sangue depois vertido, até à extinção de vidas. 

Estas espadas deviam ser a metáfora viva para os utentes dos idiomas latinos. Espadas assim sentadas convenceriam os utentes a resgatar o latim. Como se fosse possível ir levantá-lo à sepultura e permitir-lhe uma segunda vida. Para prevenir que as línguas vivas se tornem errantes. A quem é dado praticar a indulgência, é à letra morta. A sua espada está sentada, mas vive, freneticamente, sem darmos conta.

19.12.22

Podemos ser os sapatos dos outros? (Desvios do porta-aviões pequeno-burguês)

António Vale da Conceição, “Remedy”, in https://www.youtube.com/watch?v=UoG5r7mWyCs

Tomemos o exemplo das frases que queremos levar em expediente: não podem ser telegráficas, ou parte do que pretendem mostrar fica perdido antes do tempo. O motor das águas mansas está nas mãos de voluntários que se atiram de cabeça contra as frieiras da água. Não se proteste contra a inércia. Ela só existe porque a deixamos ter nome próprio.

Uma luva órfã aparece no meio da avenida. Ninguém lhe dá atenção. As pessoas passam por ela, assoberbadas com a próxima empreitada a que vão chegar atrasadas – porque o atraso é o sangue nas veias de um povo. Outras passam apenas distraidamente, tão distraidamente quanto vagaroso é o seu passo. E, todavia, se perguntassem (uns e outros) o que guarda aquela luva num arquivo imaginário, talvez uma centena de páginas seria preenchida. As pessoas só se importam com o passado quando é o delas (com as exceções dos cidadãos exemplares que buscam conhecimentos na História e dos historiadores).

Ao lado, na esplanada concorrida, ouço uma mulher em confissão angustiada ao acompanhante: 

Hoje estava no semáforo, na rotunda grande. Enquanto esperava pelo verde, o olhar perdeu-se no asfalto. De repente, perguntei como seria quando estivesse acamada, definitivamente acamada, se não teria nostalgia daquele indiferente pedaço de asfalto, daquele instante tão irrelevante e, afinal, talvez não. Hoje não damos valor ao hoje e aos frutos que ele proporciona. Só quando o hoje se transforma em ontem é que mandamos dizer, através do futuro, que o hoje desperdiçado constitui uma preciosidade emoldurada pelo ontem. Antes que o semáforo ficasse verde, senti que tinha deixado parte de mim num futuro que desconheço. E daí, fiquei a contemplar o passado, que era o dia de hoje.

Se soubéssemos ser os sapatos dos outros seria mais fácil encorparmos a tolerância que protestamos a nosso favor. Este inflamado viajar pelos dias que correm pela fuselagem dos relógios é ultrajante. Não sabemos ser quem somos e queremos ser os que invejamos. Isso não é cair nos sapatos dos outros. É querer colonizá-los como parte do que se sabe que não conseguimos ser. Não há pior tique pequeno-burguês do que este ensimesmar diletante, este contínuo apalavrar de um grande fingimento, universal.

A ardósia em que se desenham as palavras é imune aos logros que nos tornam arremedos. Devíamos participar no catálogo de honestidades que se desembaraçam do imenso mar de fingimentos. Devíamos saber ser os sapatos dos outros, mas primeiro temos de aprender a ser o nosso próprio chão. Para não sermos passageiros movidos pela vontade nuclear dos esvaziados de remorsos, dos que adulteram as condutas a seu favor, com um terrível poder de persuadir os que se enfeitiçam pelo vapor artificial que é a pior anestesia de todas. 

Se soubéssemos dos malefícios da pequena burguesia (e, talvez, da burguesia inteira), seríamos inteiros. Mandaríamos o porta-aviões da burguesia ao fundo, sem hesitações.

16.12.22

A bricolage dos distraídos

Tv on the Radio, “Mystery Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=oWe8yWqKxMI

Faziam estátuas no gelo, os distraídos. Era para afugentar a distração, como se fazer esculturas no gelo fosse a prescrição de esculápios entendidos no assunto. Antes que fossem consumidos pela distração, antes que dezembro os colonizasse e deles pouco sobrasse para janeirar a seguir, entretinham-se a fazer estátuas no gelo e a fintar a distração.

As estátuas no gelo eram representações disformes de corpos, ou de edifícios que não se pareciam com nada, ou apenas abstrações sujeita ao mais puro subjetivismo. Talvez a indeterminação fosse a marca registada dos distraídos, pois não se concebiam a menos que a distração pendesse sobre eles. Se fossem a inventariar o elenco de distrações, preenchiam mil páginas por junto, um concurso de bizarrias. Um saiu de casa em cuecas. Outro, jantou no restaurante e esqueceu-se de pagar a conta (o que deu direito a visita à esquadra de polícia). Outro era habitualmente esquecido das datas de aniversários dos entes próximos. E mais um, que foi andar de bicicleta e se esqueceu de encher os pneus, ou outro que já nem comprava guarda-chuvas porque os perdia sistematicamente quando os inaugurava.

Os distraídos não se incomodavam por o serem. Desconfiava-se que a discriminação os apoquentava: havia sempre um solícito membro do coletivo que apontava a dedo um distraído, como se sobre ele se abatesse uma praga, com riscos de contágio associados aos não acometidos pela distração sistémica. Os distraídos apoquentar-se-iam com esta discriminação, se, não por acaso, não estivessem distraídos. 

Para compensar a distração, entregavam-se à bricolage. Podiam ser estátuas de gelo quando os jardins públicos estavam colonizados pelo Inverno. Ou reparar canais de água depois de invadidos após dias de chuva a eito. Ou pegar nas ferramentas e enfeitar as árvores antes da festa da Primavera e levantar as barraquinhas de comes e bebes. Se não fosse a bricolage – é o que passa de boca em boca – os distraídos seriam ainda mais distraídos. 

Estava por determinar se os distraídos foram coagidos à bricolage, ou se eles é que descobriram as propriedades terapêuticas por sua iniciativa. O que ninguém perguntou foi se os distraídos se importavam de serem distraídos.

Os que andavam pela margem oposta da bricolage rezavam (se fosse o caso; e se, entre eles, os ateus aceitassem o descompromisso do ateísmo) para não caírem no alçapão da distração. 

15.12.22

Quando apetece ser pessimista, só para contrariar otimistas irritantes

Yard Act, “Dark Days” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=uZpuliuQ3LA

“A felicidade é um pacto que se faz com a vida.” 

Manuel Vilas

Cursos inteiros para ensinar a ser feliz. Para os aprendentes saberem usar o diapasão positivo para levar a vida e cantá-la, bela como ela é. Demitam-se os aterrados pela angústia, os profissionais da desdita, os simbólicos meirinhos da desgraça inevitável, os arruaceiros que desmentem, por birra, a beleza da tudo.

Desde os curros, bobos inomináveis adestram almas de outro modo arraçadas. Como se os sinais negativos fossem banidos e na nova aritmética de que é feita a vida só houvesse somas. Se a manhã for estribada em plúmbeas nuvens, compete-nos arranjar as forças possíveis, mergulhando no magma fundo, para que elas transitem para outra geografia. O espaço das vidas dos aprendentes é feito de dias constantemente soalheiros. Os inditosos dias de chuva, por sombrios que sejam, são dispensáveis nesta safra de que somos operários obedientes.

Os militantes da positividade de tudo não saberão o significado de contingência. Não terão conhecimento de episódios apanhados numa curva traiçoeira, quando nem o arregimentar de generosas forças trava o ardil montado para se abater sobre as desprotegidas cabeças. Não há capacetes que nos cuidem destes desafortunados acontecimentos – e isso não tem nada de conspirativo.

Pretender que tudo comporta um lado positivo, mesmo que seja a maior desgraça, é ficcional. Leva-nos pelo lado simulado da vida, como se fosse possível disfarçar o atropelamento por um elefante, fazendo equivaler o efeito à leveza sentida depois de assistir a um concerto de um músico da preferência. Se formos convencidos a empenhar a alma no compêndio de farsas destes zeladores da positividade apenas postiça, passaremos grande parte do tempo a fingir. A fingir que os males são fortuna e que os despenhamentos produzidos pelo mal atravessado abismo são equivalentes ao retempero de um mergulho numa piscina com temperatura exótica. Seremos, apenas, farsas por dentro de nós. Tanto fingir é uma fuga de nós para o incerto.

Como avisa Camus, “não há que ter vergonha de preferir a felicidade”. Para a recebermos, e para dela sermos cultores, temos de estar preparados para aguentar contratempos que desabam sobre nós. Sem dar a pele à angústia constante, nem fingir que as lágrimas são adocicadas.

14.12.22

Bastidores

Iggy Pop, “Strung Out Johnny”, in https://www.youtube.com/watch?v=qbQHlQ-tubY

Tudo se passa às escondidas. No segredo dos que têm acesso aos segredos. Não se fale de transparência, a não ser que se queira enganchar a multidão num logro imenso.

E, todavia, uma certa ética constitui-se modismo, como se fosse a gramática do sistema vigente. Não se inaugurem, com a pompa habitual, discursos celebratórios de uma prática que não passa dos compêndios onde se entretece a teoria. É a máscara que serve de cobertura ao tudo que é decidido na opacidade dos bastidores. A ética legitima tudo. Mesmo que, extraído o véu que esconde os bastidores onde tudo se passa, a ética seja uma palavra vã e se dissolva na sua enantiopatia.

Os bastidores operam como o antídoto do palco onde habita a multidão. É aí que participam no grande disfarce que sobre eles se abate, com a custódia dos procuradores da ética que depois, no recato dos bastidores, praticam o seu esquecimento. A instrução que se oficializa participa deste embuste. Ai dos que denunciarem o logro. Não escapam ao desdém geral (até daqueles que são vítimas dos bastidores) e são leiloados à conta de lunáticos que não fazem se não convocar conspirações. 

É nos bastidores, longe do escrutínio das presenças incomodativas, que se jogam os jogos que importam. Sob a aparência de um sol radioso e magnânimo, o palco que é jogado nos bastidores bolça uma cortina de espelhos que multiplica céus embaciados. Não se distinguem as palavras ecoadas; aparecem disformes, ininteligíveis, são embaraços ao entendimento comum. Como se aparecessem disfarçadas numa linguagem cifrada, uma linguagem só do conhecimento dos assíduos dos bastidores. Os demais são remetidos ao palco – o palco, onde tudo o que importa devia ter lugar e, todavia, só deixa à mostra um quinhão do que se negoceia nos bastidores.

Há quem garanta que a informação é o novo petróleo. Não se angustiam por pertencerem a uma coutada que é a negação, e explícita, do que se dizem ser embaixadores. A menos que se desprendam das regalias dos bastidores e aceitem, de vez e para bem do sistema vigente, que os dogmas que se restringem a uma teoria sem representação devem ser estilhaçados. A bem da transparência. Para não oferecer o flanco aos luditas que tão diligentemente perseguem o sistema vigente e o querem adulterado (ou pior).

13.12.22

Remorsos às três pancadas

Hans Zimmer & Lisa Gerrard, “Elysium”, in https://www.youtube.com/watch?v=REpS9H7dn1E

(Depois de “Ensaio sobre a cegueira”, encenação de Nuno Cardoso, Teatro Nacional de S. João)

Um homem fica cego ao volante do automóvel quando o semáforo muda de vermelho para verde. Desorientado, sai do automóvel e pede ajuda. Não consegue ver. Apenas um manto branco leitoso que se fez tela baça diante do olhar, assim emudecido. Um rapaz gingão aproxima-se. Mostra preocupação pela angústia dilacerante do homem. Oferece-se para o levar a casa, onde o cego esperará a ajuda da mulher. O rapaz não consegue disfarçar outros propósitos, ao perguntar insistentemente se o cego não quer que seja ele a abrir a porta de casa e a acompanhá-lo ao seu interior. No meio do desespero, o cego desconfia da generosidade insistente do rapaz. Ainda assim, esquece-se de pedir as chaves do automóvel quando o rapaz vai embora. Mais tarde, ele e a mulher percebem que o rapaz levou o automóvel.

Uma insólita cegueira contagia-se a todos os que estiveram em contacto com aquele homem que cegou sem pré-aviso. Até o rapaz que se aproveitou do seu infortúnio para se apoderar do automóvel. Dando conta da cegueira que o acometeu, e sendo coagido a uma quarentena forçosa com os demais contagiados pela cegueira do paciente zero, o rapaz lamenta-se. Lamenta que tenha ficado cego por ter roubado o automóvel do homem que cegou.

O estroina arrepende-se. É um arrependimento que não integra o manual dos exemplos que podem ser ensinados para mostrar de que é feito o remorso. O rapaz entoou um arrependimento que se disfarça de busca-pólos para garantir o perdão divino por um ato que não devia ter cometido. O remorso não é pelo ato que não devia ter cometido, talvez por o rapaz ser intermitentemente meliante. O arrependimento só espreita pelo periscópio da sua lanterna moral porque terá concluído (erradamente) que a cegueira foi a punição por ter furtado o automóvel do cego. Não se arrepende do roubo. Só se lamenta por a consequência do roubo ter sido a cegueira. Se essa não tivesse sido a consequência, o rapaz continuaria negligentemente a passear-se pelas ruas ao volante do automóvel, sem ser acossado pelos escrúpulos.  

O remorso do meliante pode ser levado em conta no inventário dos remorsos? O seu arrependimento não foi motivado pelo ato em si, apenas pelas consequências que ele ditou e apenas quando observadas sob a sua esfera pessoal. O rapaz diz, a certa altura, que se pudesse voltar atrás não teria ficado com o automóvel do homem que cegou. Eis o anátema de muitos arrependimentos. Um voltar atrás depois de sentidos os efeitos que se abatem sobre quem manifesta o arrependimento. Como se o remorso pudesse repristinar o tempo até o tornar prévio ao acontecimento que determina o arrependimento. Para ser possível bani-lo dos registos que ficam à conta do inventário do mundo. Numa retroatividade impossível.

Esta linhagem de remorsos não conta. Manifesta uma frívola e ensimesmada avaliação dos acontecimentos que se abateram sobre o rapaz. Ele suplica uma indulgência (que, ainda por cima, a lucidez lhe diria ser inalcançável), admitindo, só depois de sentir os efeitos dolorosos do seu ato, que errou ao cometê-lo. Não se espera redenção de um arrependimento assim configurado.

(A peça – e o livro de Saramago, em que a peça se baseia – é muito mais do que este episódio.)

12.12.22

Sombras

Yakuza, “Aileron, pt. 1”, in https://www.youtube.com/watch?v=TZmyGGSa99c

À boca da noite, o coldre vazio. Tinham ficado para trás as convulsões que mastins vadios teimavam em assinar. Se ao menos a noite fosse um breve lanço de escadas e não viesse ateada por pesadelos contumazes, tudo seria arrematado por bons capatazes. A paz, enfim, por interior que fosse.

Em vez disso, sombras. Sombras a insinuar diferentes camadas, como se entre cada lampejo do tempo houvesse nuvens sucessivas, umas em cima das outras, e cada camada escondesse os seus segredos. Sem renunciar, sem duvidar da encomenda da alma, os arranjos todos saciados numa empreitada que não deixava escombros.

As sombras escondiam as palavras segredadas. Nunca se sabia da existência de segredos até ser anunciada a sua existência. As sombras pesavam sobre os segredos anunciados, mas que ficavam por confidenciar. Seriam precisos confidentes em barda, ouvintes diligentes, apenas ouvintes: não seriam promotores de conselhos, porque os confessores esperavam boas recomendações, mas os confidentes não tinham lucidez para as atestar. Não queriam sentir o peso dessa responsabilidade. Limitavam-se a ser ouvintes, sombra como parte das próprias sombras.

Tudo ficava embaciado. Intraduzível ao olhar, aos sentidos. continuavam por tentativa e erro, como se os seus rostos fossem competentes para limpar as sombras que se antepunham entre eles e o horizonte. Não sabiam se podiam esbarrar em embaraços e se os podiam remover. Só sabiam que a letargia era pior conselheira. Ficar no mesmo sítio era ficar à mercê das sombras, tornando-se uma sombra em nome próprio.

A ousadia subia à cena. Como encenação masculina, procuradora de tóxica masculinidade, pois só a masculinidade consagrada é intimada para superar tamanhas contrariedades. A ousadia era a espada embainhada contra os espectros que adejavam sobre o céu tartamudeado pela trovoada nascitura. As sombras não podiam ganhar no jogo da perenidade. A noite persistente é a espada que se abate sobre a lucidez. 

Pudessem antes ser exilados num outro lugar. Outro lugar, não importava saber o nome. Desde que soubessem que era um lugar ungido pela luz diurna, sem o anátema das sombras persistentes que evocam noites árticas no Inverno ou a colonização das almas pelas sombras que se agigantam e nem assim registam a patente do seu nome. Até que das sombras sobrasse uma recordação difusa.

9.12.22

Monólogo

Smoke City, “Flying Away”, in https://www.youtube.com/watch?v=Hesv3K4Dz9M

Tiram o tempo aos sonhos, para que os sonhos se dissolvam onde antes crepitavam. Antes que seja condenado à estreita indiferença, entregam um compêndio que alimenta a conduta obrigatória. Ausculto a voz resistente que se alimenta da lava interior. Não serão esbulhados, os sonhos. É uma voz que não será retirada.

Jogo os centímetros do passado contra a demanda da memória. Meticulosamente. Por respeito a esse tempo sem o qual ninguém pode reivindicar um lugar na geografia do presente. Oxalá não seja voluminosa a empreitada. Talvez o segredo seja condensar o tempo em compartimentos e deixá-los escolher os seus próprios periscópios para que sejam eles a falar a seu respeito. Limito-me a anotar frases significativas. A extrair dos lampejos de luz legados pelo passado os fragmentos que compõem a tela que tenho diante dos olhos.

Se fosse possível fazer outros desenhos, que desenhos seriam esboçados? Não se pode esconjurar as impurezas através de uma demanda que finge não ter sucedido e, em sua vez, montar um teatro do que teria acontecido se o sucedido não tivesse vencimento. Atirar os dados desta maneira é um recalcamento do cenário em que assenta o corpo. É uma mentira, contra a qual o sono não se pacifica. O tempo não se refaz. Os sonhos, às vezes, tratam de o avivar com a máxima resplandecência.

É desta convulsão de opostos que se inteiram as marés. Se apenas se convocasse um único sentido, a desonestidade seria o verbo forte. Tudo é composto da concorrência de contrários. As encruzilhadas constantes exigem a escolha de um caminho. Mas os caminhos enjeitados não são desaproveitados. Se forem segunda escolha, constituem uma escolha. Nem que seja amanhã, ou depois. Não se tomam por palavras definitivas as malhas que primeiro vêm às mãos. 

É o tirocínio da vida andada que abastece a lucidez. É por não retratar os sonhos que falam a sua vontade própria que sou penhor do desprendimento de nada considerar arrematado. As coisas embebem-se na sua fragilidade inata. Até as que se interiorizam penhoras da mais amuralhada condição. 

8.12.22

Não queiras ser o parente pobre

Pulp, “Underwear” (live at Reading), in https://www.youtube.com/watch?v=FsfRB0dG60k

O provérbio mata a epifania aprisionada dentro de nós. Se formos na levada dos lugares-comuns, não passamos da cepa torta (outro lugar-comum). Em vez de ouro, ofereça-se algo modesto às intenções que se jogam no estirador. Não precisamos de ser exemplares figuras que merecem estatuto de escol.

O provérbio amansa as palavras que se querem desenfreadas, irrequietas, reinventadas. Não precisamos de instrutores da monotonia que ensinam como são os cânones a que obedecem os bem-comportados. Não precisamos de manual de instruções – e ponha-se um ponto final no remate da frase, sem lugar a enxertos que possam mediar as exceções pela invocação de especiais circunstâncias. Um ponto final categórico, que há domínios imunes às exceções.

E se recebermos um convite que se disfarça de farsa para nos empurrar para o chão onde todos são parentes pobres de uma indistinta gesta, não hesitemos. Digamos um também categórico não. Não aferimos a linhagem pela métrica dos procuradores da habitualidade. A habitualidade. esconde a colonização de espíritos em que decaem os que aceitam ser parentes pobres de um qualquer parente eventualmente rico em alguma coisa (sem estar à vista o quê).

Arremetemos contra as ondas que nos atiram para um nanismo com consequências. Não sejamos derrotados pela fala iracunda desse mar que apequena o que somos. Ainda que sejamos parentes pobres, que seja aferido pelo julgamento próprio. De fora-da-lei passamos a remediar a contingência de uma lei que é de fora. A lei, tortuoso mecanismo que zela pela nossa obediência, torna-se fora-de-lei. Ninguém é parente pobre porque os parentes ricos foram todos na praça que os levou à hasta pública. 

Sobraram os que não sabem o que é a pobreza. Os que não podem, por essa medida, ser parentes pobres. Somos todos ricos num algo por determinar.

7.12.22

A correria sem feitio

Mogwai, “Batcat” (live in Sydney), in https://www.youtube.com/watch?v=ihj8ejAoEoQ

Correrias ao acaso se na tua direção viesse uma turba em correria possivelmente errante?

- Porque dizes possivelmente errante?

Os que vinham a correr na tua direção teriam começado a correr panicamente porque outros iniciaram uma corrida possivelmente anárquica antes deles.

- E alguém sabia a razão de todos desatarem a correr?

Diz-me tu.

- Como o posso dizer, se estou aqui parada à tua frente, apenas desassossegada pelo teu desassossego especulativo?

Desafio-te a imaginares o cenário assim composto.

- Se estivesse na rua e do lado contrário uma multidão corresse sem eu saber de que fugiam?

Sim.

- Talvez desatasse a correr no mesmo sentido. Seria coagida a engrossar a maré.

Coagida?

- O que farias tu? Punhas a armadura do dissidente, a armadura que tanto gostas de envergar, e não te movias, à espera do cataclismo que sobraria da última pessoa que por ti passasse a correr?

Não sou eu que vou desemaranhar o enigma. Faço de narrador, ou, quando muito, de observador desinteressado e imparcial que adeja sobre o cenário assim montado.

- E porque hei de aderir ao teu jogo?

Porque gostas de jogar. Porque – conheço-te bem – não consegues resistir a uma demanda especulativa, mesmo aquelas que foram exoneradas de sentido.

- Posso começar por exonerar o narrador, ou o observador exterior, ou que quer que sejas...

Não, não podes. O meu papel é inamovível. Sou, no exercício deste papel, intocável. Eu posso interferir com o curso dos acontecimentos. Tu não me conheces.

- Como podes interferir com o curso dos acontecimentos se há pouco deste a saber que és observador imparcial?

Posso ser imparcial e ser-me dado interferir com os acontecimentos. As duas são mutuamente excludentes. Insisto: começavas a correria a favor da correria para ti sem sentido?

- Temos direito a impulsos irracionais.

E sê-lo-ia irracional? Não é racional o gesto espontâneo de engrossar a maré se as pessoas vierem no teu sentido numa correria aparentemente sem sentido?

- Tenho de confiar na racionalidade das outras pessoas.

E se o primeiro que começou a correr e contagiou uma multidão não tivesse razão para fugir? 

- Apurar-se-ia. 

Quando? Quando todos fossem empurrados para um abismo sem saída e já não houvesse ninguém para apurar os danos e as responsabilidades?

- Não dramatizes. Apurar-se-ia que era uma corrida apenas para manter a forma física. e que uma multidão aderiu, muito embora vigarizada pelo propósito da correria que tresleram como fuga. Não se diz que somos propensos ao sedentarismo e que o sedentarismo nos mata vagarosamente? A correria não seria sem feitio, como vês.

6.12.22

O bobo itinerante

Massive Attack ft. Shara Nelson, “Unfinished Sympathy” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=BQdgZfC2zmw

Babado nas barbas por gastar, o bobo balbuciava no bojo dos maduros. Sabia que essa era a sua audiência. Como se estivesse à espera dos bolbos assoberbados com o idadismo, pois os bolbos abotoavam-se sobre si mesmos, com medo da idade sarcófaga.

O bobo andarilhava de terra em terra. Com diferentes freguesias, espalhadas pelo território. O bobo admitia que não conseguia angariar freguesia demorada, pois o seu manancial esgotava-se no curto prazo e a freguesia desinteressava-se do enredo. Tinha de ser itinerante. Para continuar a ser bobo.

O bobo itinerante confiava que todos estávamos na idade média. Confiava que não havia passa-a-palavra. Se o passa-a-palavra se traduzisse na divulgação do bobo, depressa deixaria de ser itinerante, depressa deixaria de ser bobo. O bobo continuava a acreditar na sua diligência para a função e na sorte: talvez vivêssemos acantonados nos lugares exíguos que são a nossa pertença e não houvesse contactos entre os de diferentes terras. Admitiu a concurso uma hipótese concorrente: a comunicação entre diferentes lugares existe, os seus dotes circenses não eram falados pelos espetadores porque estes gostam de castigar as pessoas de lugares vizinhos. Esta hipótese só era admitida quando o bobo estava melancólico.

O bobo não era novo. Não se dissesse dele que estava a entrar na curva descendente da carreira (oh! a impensável velhice, que o bobo acreditava piamente ter arranjado antídoto contra a velhice). Estava a meio caminho. Mas ele acreditava que estava no auge. Ou, pelo menos, era o mais cómodo de acreditar, um fingimento assoberbado ocultado até nas divagações mais íntimas com o alter ego da consciência. 

Quando ouvia as suas récitas (só ele usava a palavra como denotativo das atuações), o bobo ria-se. Continuava a reconhecer dotes para entreter uma audiência. Na sua itinerância, o bobo só se lembra de um punhado de espetadores ter abandonado as suas récitas (e, para o fazerem, terá sido por uma emergência – como ir a uma casa de banho sem poder adiar a necessidade fisiológica, atender o telefone ao psiquiatra, levar o cão à rua para não urinar nos tapetes da casa, ou para responder ao desafio de uma epifania). O bobo continuava a ser itinerante e não se importava. Autêntico cidadão do mundo (muito embora os idiomas estrangeiros não fossem o seu forte), ia marcando no mapa com pioneses os sítios andados. A malha de pioneses era invejável (para quem gosta de conhecer novos lugares, não para os que não querem ser bobos).

O bobo sabia que se deixasse de ser itinerante, deixaria de ser bobo. Foi quando a carreira escorregou para a curva descendente, e nunca mais de lá saiu. 

5.12.22

Politburo

Hot Chip, “Broken”, in https://www.youtube.com/watch?v=_pG-mhg-NVs

“Uma má decisão coletiva é melhor do que uma boa decisão individual”, palavras de um militante do PC, cujo nome não foi revelado.

Uma espécie de cobertura para disfarçar o bolo, ou o ardil para dar fingimento a uma condição que não se quer exposta. As peças movem-se, matreiras, no cenáculo onde lidam com as contingências inevitáveis. É preciso uma decisão. Sob pena de todos ficarem à mercê das implacáveis congeminações imputáveis à entidade mítica que dá pelo nome de destino.

Uma aspiração sublime da pessoa é haver quem se responsabilize pelos seus atos. É o que dizem alguns, a pretexto de outros preparos. Juntam-se as pessoas numa assembleia. A linguagem moderna chama um “brainstorm”. Tantos cérebros engaçados em febril intelectual atividade coalescem numa deliberação coletiva. Dizem os mesmos, a pretexto de outros pretextos: muitas cabeças juntas pensam melhor do que uma sozinha. Não importa medir o pulso à qualidade da decisão. O processo é que conta. Há que despir a pessoa da sua individualidade. Ela assume a sua vocação quando se junta a outras e todas, em conjunto, decidem em nome de cada uma.

A tempestade de cérebros amanhece o dia claro que se exige para afastar fantasmas. Juntos, misturam os vários ângulos que se oferecem à análise. Previne-se o monolitismo da observação que é inata à decisão quando é tomada por um só (o autocrata). As cartas são atiradas para a mesa e ficam disponíveis para o necessário sopesar. Os cérebros em febril atividade intelectual irrompem na discriminação do que interessa reter e do que deve ser prescindido. Uma vez mais: o processo é que conta. O resto não. Não importa que a decisão esbarre na aresta do erro. 

Para memória futura, e para aprendizagem dos petizes ainda carentes de tirocínio para serem cidadãos exemplares: recusem o ensimesmar das decisões tomadas no interior de si mesmos. Ainda que essas decisões vençam no plano dos efeitos, são sempre inferiores às decisões quando todos se juntam em assembleia e festejam a resolução aprovada pelo grupo. Ainda que esta seja uma má decisão; pois, sendo coletiva, e sobrepondo-se o processo aos efeitos do mesmo, uma má decisão, se coletiva, tem precedência sobre uma decisão boa, só que selada com a assinatura de uma pessoa só. 

Eis uma boa súmula da má moeda cunhada na História da humanidade.

2.12.22

O futuro não interessa

Nils Frahm, “All Melody” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=7IZOdI2jdKU

Fala-se de mais do futuro.

E, todavia, poucos se projetam para as vénias vindouras sem ultrajarem o tempo existente. São venais representantes de uma cidadania que se extingue no propósito de prever o imprevisível. Agacham-se, temerosos, na dialética imponderável. Quando se lembram de olhar em retrospetiva (num diletantismo sem serventia), encontram a sua servidão perante um tempo que só se consuma nas suas próprias condições.

O futuro não interessa. Deviam-no levar como mnemónica, como se fosse possível depositar o lema na faixa superior da tela onde ecoa o pensamento. O futuro não interessa: ponto final. As pessoas que esgotam o tempo sensível em múltiplas digressões por um tempo ainda fantasma perdem-se na encruzilhada constante que é o presente. Nem chegam a perceber que o presente é efémero, como se acreditassem que é o sucessivo desfilar de instantes, o modo do presente, que cimenta o foro do futuro. Quando o futuro se encontra num apeadeiro, deixou de o ser. É uma névoa que se extingue sem prazo.

O futuro não interessa porque é contingente. Amadurece na medida de um andamento próprio, insensível aos apelos de quem julga nele encontrar um propósito. Não interessa, porque é especulativo. Poderá ser do agrado dos que se jogam no tabuleiro onde apenas conta a errante sucessão de acontecimentos, como se ela resultasse de um atirar de dados para o tabuleiro que por eles espera para lhes dar tradução. O futuro, quando corresponde ao esperado, é uma coincidência.

Ninguém é órfão do futuro. O arsenal de medos não se estende pelo tempo fora, pelo que tempo que está em espera. Os medos são uma imagem do presente, condimentado pelos sismos que hipotecaram o passado. Não se invista o futuro como refúgio. Desacreditem-se os que juram ser detentores de oráculos. Não sabemos nada do futuro. Por isso, o futuro não interessa.

1.12.22

Casa do azar

Glockenwise, “Vida Vã”, in https://www.youtube.com/watch?v=SEzz-FJP74E

Eis o ruído segregado pelos rochedos que eram o peito que recebia o mar. Se alguém se distraísse na falésia e caísse em falso, seria devorado pela fraga onde o mar se sujeitava a uma centrifugação violenta. Todos os anos havia vítimas, gente distraída, atraiçoada pelo assombro da vertigem. O abismo, e o mar, eram assassinos, como era sabido até pelos desatentos.

Não longe, um casino. As pessoas entravam no casino de costas para o mar. Não sabiam da paisagem. Sabiam que essa seria a paisagem à saída. Por muita fé (sem sentido metafísico) que colocassem na visita, interiorizavam a elevada probabilidade de saldarem a visita ao casino com dolorosas perdas materiais. Ao menos consolavam-se com a paisagem deslumbrante, o mar a embater na falésia ardilosa. Há notícias de uns quantos jogadores que, desesperados pela agonia de tantas perdas e pela falta de autocontrolo, usaram a vizinhança do abismo para cometerem suicídio.

 Os funcionários da emergência médica e dos bombeiros estavam habituados a retirar corpos das imediações da fraga. Não ousavam entrar naquele lugar: as correntes puxavam as embarcações para o fundo, era muito arriscado. De cada vez que havia registo de um corpo caído no mar, tinham de esperar pelo andamento da natureza até que as correntes e as marés cuspissem o corpo num amontoado de rochas limítrofe, ou no areal mais próximo. Os funcionários da emergência médica e os bombeiros não tinham por hábito ir ao casino. Desse azar não participavam.

Os funcionários do casino passavam por um tirocínio exigente. À semelhança do pessoal médico e dos bombeiros, eram treinados na exigente insensibilidade às misérias humanas. Não podiam aconselhar moderação aos utentes, não podiam prestar aconselhamento a título algum. A comiseração pela angústia dos perdedores era proibida, sob pena de processo disciplinar por incumprimento das obrigações profissionais. Na casa do azar, os funcionários eram os notários dos infortúnios que calhassem em azar aos jogadores. Não queriam saber dos suicídios na falésia, nem das falências ditadas à saída das salas de jogo. Não queriam saber das outras vidas. E eram invejados por isso.

O azar de uns é a fortuna de outros (ode aos lugares-comuns, outra sementeira do azar).