(Depois de “Ensaio sobre a cegueira”, encenação de Nuno Cardoso, Teatro Nacional de S. João)
Um homem fica cego ao volante do automóvel quando o semáforo muda de vermelho para verde. Desorientado, sai do automóvel e pede ajuda. Não consegue ver. Apenas um manto branco leitoso que se fez tela baça diante do olhar, assim emudecido. Um rapaz gingão aproxima-se. Mostra preocupação pela angústia dilacerante do homem. Oferece-se para o levar a casa, onde o cego esperará a ajuda da mulher. O rapaz não consegue disfarçar outros propósitos, ao perguntar insistentemente se o cego não quer que seja ele a abrir a porta de casa e a acompanhá-lo ao seu interior. No meio do desespero, o cego desconfia da generosidade insistente do rapaz. Ainda assim, esquece-se de pedir as chaves do automóvel quando o rapaz vai embora. Mais tarde, ele e a mulher percebem que o rapaz levou o automóvel.
Uma insólita cegueira contagia-se a todos os que estiveram em contacto com aquele homem que cegou sem pré-aviso. Até o rapaz que se aproveitou do seu infortúnio para se apoderar do automóvel. Dando conta da cegueira que o acometeu, e sendo coagido a uma quarentena forçosa com os demais contagiados pela cegueira do paciente zero, o rapaz lamenta-se. Lamenta que tenha ficado cego por ter roubado o automóvel do homem que cegou.
O estroina arrepende-se. É um arrependimento que não integra o manual dos exemplos que podem ser ensinados para mostrar de que é feito o remorso. O rapaz entoou um arrependimento que se disfarça de busca-pólos para garantir o perdão divino por um ato que não devia ter cometido. O remorso não é pelo ato que não devia ter cometido, talvez por o rapaz ser intermitentemente meliante. O arrependimento só espreita pelo periscópio da sua lanterna moral porque terá concluído (erradamente) que a cegueira foi a punição por ter furtado o automóvel do cego. Não se arrepende do roubo. Só se lamenta por a consequência do roubo ter sido a cegueira. Se essa não tivesse sido a consequência, o rapaz continuaria negligentemente a passear-se pelas ruas ao volante do automóvel, sem ser acossado pelos escrúpulos.
O remorso do meliante pode ser levado em conta no inventário dos remorsos? O seu arrependimento não foi motivado pelo ato em si, apenas pelas consequências que ele ditou e apenas quando observadas sob a sua esfera pessoal. O rapaz diz, a certa altura, que se pudesse voltar atrás não teria ficado com o automóvel do homem que cegou. Eis o anátema de muitos arrependimentos. Um voltar atrás depois de sentidos os efeitos que se abatem sobre quem manifesta o arrependimento. Como se o remorso pudesse repristinar o tempo até o tornar prévio ao acontecimento que determina o arrependimento. Para ser possível bani-lo dos registos que ficam à conta do inventário do mundo. Numa retroatividade impossível.
Esta linhagem de remorsos não conta. Manifesta uma frívola e ensimesmada avaliação dos acontecimentos que se abateram sobre o rapaz. Ele suplica uma indulgência (que, ainda por cima, a lucidez lhe diria ser inalcançável), admitindo, só depois de sentir os efeitos dolorosos do seu ato, que errou ao cometê-lo. Não se espera redenção de um arrependimento assim configurado.
(A peça – e o livro de Saramago, em que a peça se baseia – é muito mais do que este episódio.)
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