21.12.22

Gastronomia às cegas

Cocteau Twins, “Evangeline”, in https://www.youtube.com/watch?v=9yapze5PaFs

Faz lembrar aquele filme de Kubrick, em que os circunstantes iam às cegas e ficavam à mercê do jogo dos corpos e do desejo, de olhos vendados, sem saberem os corpos com que se fundiriam. A modalidade expõe-se à analogia: os que amesendam sem saberem a ementa, apenas sabendo que ficam à mercê dos caprichos do chefe que, desde a cozinha, prepara a tempestade de acepipes. É um tremendo voto de confiança – e, para os que impuserem a si mesmos tabus alimentares, um despojamento que equivale a um exigente auto desafio.

É um exercício arriscado. Os que amesendam não estão de olhos vendados. A ementa em branco é a metáfora dos olhos vendados. Se à mesa subirem sabores que não caem nas boas graças do palato, os amesendantes desforram-se no vinho: uma das suas serventias é cobrir um sabor desavenho que ficou a adornar na boca. Não pode ser o momento da capitulação. A gastronomia às cegas prossegue espera pelos ulteriores momentos. 

Os momentos disputam a preferência dos amesendantes. Os paladares desfilam como uma palete onde as diversas matizes ora se combinam, ora parecem dissonantes. Os amesendantes são anestesiados por um dilúvio de sensações. Podem simular uma venda sem ser retórica. Antecipam a subida a palco de mais uma iguaria fechando os olhos. Continuando de olhos fechados à medida que o primeiro pedaço desce à boca e se entrega ao seu escrutínio. 

A gastronomia às cegas é uma aproximação à poesia. Pela inebriação que ateia. Pela multiplicidade de paisagens gastronómicas que atravessam os sentidos. Pela criatividade com assinatura do cozinheiro, que se entranha no mais fundo da carne à medida que as iguarias se apresentam aos amesendantes. 

A mistura de sabores é o quociente da imaginação que os arranca do arcano preconceito que ensinou a sua incompatibilidade. Há carnes que se cruzam com reduções vínicas perfumadas com frutos vermelhos (ou com kiwi baby), servidas com risoto de castanhas. Há peixes que recebem uma cama de frutas diversas caramelizadas no forno com a benção de Vinho Madeira. Há mariscos cruamente fatiados, deitados numa cama de rebentos, acompanhados por gelado de lima e gelado de chocolate branco e jalapeños (e não consta como sobremesa). Há um tártaro de framboesas brancas, groselhas e ruibarbo macerados em Porto Lágrima com crocante de panceta

Os cegos saem do santuário prontos a ver como nunca lhes foi dado a ver. Uma cegueira destas é a cura para quem julga tudo ver e, todavia, tropeça em peias muito próximas.

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