6.12.22

O bobo itinerante

Massive Attack ft. Shara Nelson, “Unfinished Sympathy” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=BQdgZfC2zmw

Babado nas barbas por gastar, o bobo balbuciava no bojo dos maduros. Sabia que essa era a sua audiência. Como se estivesse à espera dos bolbos assoberbados com o idadismo, pois os bolbos abotoavam-se sobre si mesmos, com medo da idade sarcófaga.

O bobo andarilhava de terra em terra. Com diferentes freguesias, espalhadas pelo território. O bobo admitia que não conseguia angariar freguesia demorada, pois o seu manancial esgotava-se no curto prazo e a freguesia desinteressava-se do enredo. Tinha de ser itinerante. Para continuar a ser bobo.

O bobo itinerante confiava que todos estávamos na idade média. Confiava que não havia passa-a-palavra. Se o passa-a-palavra se traduzisse na divulgação do bobo, depressa deixaria de ser itinerante, depressa deixaria de ser bobo. O bobo continuava a acreditar na sua diligência para a função e na sorte: talvez vivêssemos acantonados nos lugares exíguos que são a nossa pertença e não houvesse contactos entre os de diferentes terras. Admitiu a concurso uma hipótese concorrente: a comunicação entre diferentes lugares existe, os seus dotes circenses não eram falados pelos espetadores porque estes gostam de castigar as pessoas de lugares vizinhos. Esta hipótese só era admitida quando o bobo estava melancólico.

O bobo não era novo. Não se dissesse dele que estava a entrar na curva descendente da carreira (oh! a impensável velhice, que o bobo acreditava piamente ter arranjado antídoto contra a velhice). Estava a meio caminho. Mas ele acreditava que estava no auge. Ou, pelo menos, era o mais cómodo de acreditar, um fingimento assoberbado ocultado até nas divagações mais íntimas com o alter ego da consciência. 

Quando ouvia as suas récitas (só ele usava a palavra como denotativo das atuações), o bobo ria-se. Continuava a reconhecer dotes para entreter uma audiência. Na sua itinerância, o bobo só se lembra de um punhado de espetadores ter abandonado as suas récitas (e, para o fazerem, terá sido por uma emergência – como ir a uma casa de banho sem poder adiar a necessidade fisiológica, atender o telefone ao psiquiatra, levar o cão à rua para não urinar nos tapetes da casa, ou para responder ao desafio de uma epifania). O bobo continuava a ser itinerante e não se importava. Autêntico cidadão do mundo (muito embora os idiomas estrangeiros não fossem o seu forte), ia marcando no mapa com pioneses os sítios andados. A malha de pioneses era invejável (para quem gosta de conhecer novos lugares, não para os que não querem ser bobos).

O bobo sabia que se deixasse de ser itinerante, deixaria de ser bobo. Foi quando a carreira escorregou para a curva descendente, e nunca mais de lá saiu. 

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